Tatiana Prazeres

Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

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Tatiana Prazeres
Descrição de chapéu Ásia

Passaportes internos impõem custo alto a milhares de migrantes dentro da China

'Hukou' determina em que cidade um chinês tem acesso a serviços públicos como educação, saúde e subsídio para moradia

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Lembro-me bem de quando perguntei casualmente a uma amiga chinesa, grávida, onde seu filho nasceria. Ela respondeu: "Aqui em Pequim. Mas o bebê não terá o 'hukou' de Pequim".

Fiquei intrigada com o destaque que a chinesa de Yunnan atribuiu, na resposta, à cidade que constaria no registro de residência do filho. A referência ao "hukou" abriu meus olhos para a importância, na China de 2021, dessa espécie de passaporte interno, de inspiração soviética, estabelecido nos anos 1950.

O "hukou" determina em que cidade um chinês tem acesso a serviços públicos como educação, saúde e subsídio para moradia. Se optar por migrar para outra cidade, o indivíduo não usufrui dos mesmos direitos dos seus compatriotas que têm o "hukou" local.

Crianças deixam escola em Shenzhen - David Kirton - 20.abr.21/Reuters

É muito difícil mudar o registro. Às vezes, um emprego numa estatal ou o casamento com um parceiro de outro "hukou" dão esse direito. Notícias de corrupção e uniões forjadas em função do registro não faltam.

A justificativa oficial para o "hukou" é promover a urbanização ordenada deste que é o país mais populoso do mundo e onde, até 2010, espantosamente, a população rural ainda superava a urbana. Muitos defendem o sistema como um mal necessário, inclusive para evitar o surgimento de favelas nas cidades.

Para outros, o sistema cria cidadãos de segunda categoria dentro do próprio país. O tal passaporte interno prejudica especialmente trabalhadores que vêm do campo em busca de oportunidades melhores nas cidades.

O problema se estende às famílias desses migrantes. Uma legião de crianças é deixada aos cuidados de avós e parentes no interior porque, nas cidades, a vida é especialmente cara sem certos serviços.

O drama das chamadas "crianças deixadas para trás" não é trivial. São cerca de 31 milhões longe de ambos os pais. Normalmente, os reencontros ocorrem apenas uma vez ao ano, no feriadão do Ano-Novo chinês. Quem tem sorte se encontra duas ou três vezes. O "hukou" certamente não explica tudo, mas é parte importante do problema.

Claro, há quem resista a abolir o registro de residência. Não apenas os ricos, mas especialmente a classe média urbana tem receio de que caia a qualidade dos serviços oferecidos pelo Estado. Autoridades de cidades cobiçadas reforçam a preocupação.

Pelas beiradas, algumas mudanças são introduzidas. Cidades de até 3 milhões de habitantes tiveram que flexibilizar regras. Pequim e outros municípios maiores buscam oferecer mais serviços aos que não têm o registro, sem, no entanto, abrir mão do sistema. Neste ano, a província de Jiangxi, no sudeste chinês, decidiu que, dentro do seu território, as pessoas da província podem ter o "hukou" da cidade que desejarem.

Não é suficiente diante do tamanho do desafio. Hoje, os migrantes internos respondem por 40% da força de trabalho das cidades. O número crescerá, inclusive porque ainda há margem para urbanização na China.

Se nada mudar, o filho do casal de Yunnan, nascido na capital chinesa, não poderá frequentar o ensino médio numa escola pública de Pequim. Num eventual problema de saúde, os pais têm de arcar com as despesas mesmo num hospital público, diferentemente do que ocorre com uma criança de "hukou" local.

A alternativa é buscar tratamento numa cidade a 2.000 km de distância. Ou pagar um seguro privado. Quando crescer, o menino cumprirá exigências adicionais se desejar comprar um imóvel onde nasceu.

Se a China realmente pretende atacar desigualdades e promover a dita "prosperidade comum", não pode fugir de uma reforma, para valer, do sistema de registro de residência.

Enquanto uma conversa sobre o nascimento de um bebê for associada a que "hukou" ele terá direito é porque o problema persiste.

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