Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Leodegária de Jesus, poeta goiana e negra, merece ter a sua obra redescoberta

Autora de 'Coroa de Lírios' e 'Orquídeas', de tintas parnasianas, foi a primeira mulher a publicar um livro em Goiás

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Faz tempo que quero falar sobre a poeta goiana Leodegária de Jesus, nascida em Caldas Novas, e que viveu de 1889 a 1978.

Preciso dizer que Leodegária de Jesus era uma mulher negra, e que foi bastante precoce no campo da literatura e do jornalismo. No Brasil a regra é o esquecimento de grandes vozes negras, o seu embranquecimento, ou o seu total apagamento da história. Grandes nomes de expressão literária negra do passado estão entre os ignorados pela crítica e pelo meio acadêmico.

A poetisa Leodegária de Jesus, em desenho de Amaury Menezes
A poeta Leodegária de Jesus, em desenho de Amaury Menezes - Amaury Menezes/Reprodução

Três desses nomes ainda carecem de reconhecimento e estudos. O primeiro é Teixeira e Sousa, que viveu de 1812 a 1861. Sousa é, simplesmente, o autor do primeiro romance brasileiro —"O Filho do Pescador"—, publicado no ano de 1843, no Rio de Janeiro, antes, portanto, de "A Moreninha", este editado em 1844, pelo médico e jornalista Joaquim Manuel de Macedo —que viveu de 1820 a 1882.

Além de "O Filho do Pescador", Teixeira e Sousa publicou outros romances, como "A Tarde de um Pintor ou As Intrigas de um Jesuíta", de 1847, "A Providência", de 1854, e "Maria ou a Menina Roubada". Foi também poeta, jornalista e editor, tendo trabalhado com Paula Brito e o jovem Machado de Assis.

Depois de Sousa, temos a maranhense Maria Firmina dos Reis, que viveu de 1822 a 1917. É dela o primeiro romance em língua portuguesa publicado no Brasil —"Úrsula"— do ano de 1859, ou seja, em pleno período da escravidão, tema, aliás, da obra.

A fortuna literária de Firmina inclui poesia, contos, memórias, letras de músicas, charadas e crônicas. Professora, por concurso aos 25 anos, teve a ousadia de juntar, na mesma sala de aula, meninos e meninas, entre os quais filhas e filhos de escravizados, o que deu motivo para escândalos e fechamento de sua escola.

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Imagem da obra vencedora de um concurso realizado pela Flup (Festa Literária das Periferias) para recriar o rosto da autora, feita pelo artista João Gabriel dos Santos Araújo - Reprodução

Outra escritora que não se pode deixar de mencionar é Carolina Maria de Jesus, nascida em Sacramento, Minas Gerais, em 1914 e morta em São Paulo, no ano de 1977.

Carolina de Jesus, conhecida por catar papéis para sobreviver e sustentar os três filhos, como mãe solo, morou na favela do Canindé, mas iniciou a vida literária em 1940, quando publicou seu primeiro texto na imprensa. No entanto, só foi reconhecida em 1960, com a publicação de "Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada", editado pelo jornalista Audálio Dantas.

Publicaria outros três livros, "Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-Favelada", "Pedaços da Fome", romance, e um livro de provérbios. Postumamente, lançaram suas poesias e alguns contos. Carolina de Jesus, hoje bastante festejada no cenário nacional, morreu isolada, doente e empobrecida, embora tenha sido a escritora mais lida durante a década de 1960.

Já a poeta Leodegária de Jesus sofre de um apagamento injustificado ainda nos dias de hoje. Jovem mulher à frente do seu tempo, Leodegária publicou o seu primeiro livro —"Coroa de Lírios"—, em 1906, com 16 para 17 anos. No ano seguinte da sua estreia literária, funda o jornal A Rosa, em parceria com a poeta Cora Coralina, conterrânea e sua amiga pela vida toda.

Leodegária é filha de José Antônio de Jesus, mineiro de Diamantina, um ex-seminarista, mestre-escola e deputado de grande expressão do estado de Goiás. É dele a lei que transforma a vila de Jataí em cidade, em maio de 1885. Já a mãe, Ana Isolina Furtado Lima de Jesus, filha de médico, era branca, pertencente a uma abastada família de Jaguará. Por meio dela, Leodegária aprendeu as primeiras lições de leitura.

Ao publicar "Coroa de Lírios", Leodegária de Jesus se torna a primeira mulher a publicar um livro no estado de Goiás. Por ser negra, seu pioneirismo aumenta nas letras de sua terra natal. Ela amplia esse protagonismo, 22 anos mais tarde, ao publicar "Orquídeas", certamente sua obra da maturidade.

Nascida em agosto de 1889, entre a abolição da escravatura e a proclamação da República, Leodegária de Jesus tem a sua poesia influenciada pelo parnasianismo, mas com ecos na escola romântica e simbolista, resquícios talvez de leituras de Cruz e Sousa e Casimiro de Abreu.

Não há evidências diretas da influência de um autor do parnasianismo em sua poesia, mas entre 1906 e 1920, Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira eram os poetas mais festejados e publicados no Brasil.

Quanto à influência romântico-parnasiana, Leodergária de Jesus se aproxima do modo de versejar do poeta fluminense B. Lopes —Bernardino da Costa Lopes, também de sangue negro, que talvez ela não tenha conhecido.

Em "Coroa de Lírios", por exemplo, destaco da influência belopeana o soneto "Setembro", tocante do bucolismo entre a natureza e a vida: "Eis que nos vem, de novo, a primavera/ A linda quadra das mimosas flores/ A par do viço e festivais rumores,/ Um doce riso, em toda a parte, impera./ Aqui... e ali... no céu azul –turquesa,/ Perpassam nuvens brancas, vaporosas,/ Enquanto o campo ostenta-se, em beleza,/ E além ressoam notas maviosas./ De borboletas prazenteiro banco/ Pelo vergel florido, esvoaçando,/ Vai, num enleio doce, indescritível./ Em tudo eu vejo um riso de alegria,/ Só, em minh’alma, paira a nostalgia,/ Uma tristeza acerba, indefinível!".

Em "Orquídeas" fere mais a influência parnaso-simbolista de um Cruz e Sousa ou do mineiro Alphonsus de Guimaraens —lembrando que Leodegária de Jesus morreu em Belo Horizonte, a capital mineira.

Percebemos essa influência nos tercetos do soneto "Infortunado": "E assim, tão só na vida e na desgraça,/ Ninguém percebe o trágico suplício/ Que te vai n’alma e o coração traspassa./ Eu que conheço a história dessa mágoa,/ A história triste desse sacrifício,/ Ao ver-te sinto os olhos rasos d’água".

A poesia de Leodegária de Jesus é uma profissão de fé. Na prática, além de poeta e jornalista, foi professora, após ser recusada por ser negra no curso de direito. O pai, consciente do racismo, protestou, exigindo a nomeação de uma banca examinadora, mas pouco se conseguiu a respeito.

Parabéns a Livraria Leodegária e a Leodegária Publicações por este resgate.

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