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Audálio revelou Carolina de Jesus e enfrentou ditadura após morte de Herzog

Jornalista começou como repórter na Folha da Manhã e ganhou fama após encontro com escritora

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São Paulo

Um plano modesto levou o jornalista Audálio Dantas ao encontro mais importante de sua carreira, em maio de 1958. Ele queria passar uma semana observando o cotidiano de uma favela que crescia perto do centro de São Paulo e escrever uma reportagem sobre a vida de seus moradores.

Após três dias em campo, o repórter voltou para a Redação com meia dúzia de cadernos escolares, depositou-os na mesa do chefe e disse que o melhor a fazer era publicar seu conteúdo. Tinham sido escritos por Carolina Maria de Jesus, uma moradora da favela do Canindé que ele acabara de conhecer.

"Estava convencido de que não conseguiria retratar aquele mundo miserável com a mesma força e a mesma verdade contidas naqueles cadernos", explicou Audálio muito tempo depois, num livro em que reviu sua trajetória no jornalismo e reuniu os trabalhos mais significativos que publicou.

Homem sorridente, de óculos, cabelos brancos bem curtos, vestindo jaqueta de brim azul escuro sobre camiseta polo da mesma cor, com várias pessoas atrás numa festa.
O jornalista Audálio Dantas na festa que comemorou os 45 anos da TV Cultura, em 2014 - Bruno Poletti - 24.set.2014/Folhapress

Ele contou a surpreendente história de Carolina aos leitores da Folha da Noite na edição de 9 de maio de 1958. "O drama da favela escrito por uma favelada" era o título do texto principal, publicado com uma seleção dos escritos encontrados nos cadernos e quatro fotografias de Gil Passarelli.

Audálio achou-a por acaso. Estava acompanhando a movimentação num canto da favela quando viu Carolina sair do barraco em que vivia para esbravejar com garotos que não deixavam as crianças usar os brinquedos instalados pela prefeitura no lugar. "Vou botar o nome de vocês no meu livro!", gritava.

A curiosidade o fez se aproximar para conversar, e Carolina o levou até o cômodo em que morava com os três filhos. No armário, havia dezenas de cadernos preenchidos com sua caligrafia caprichada. Eram diários, romances, poemas e histórias curtas, que ela escrevia desde os anos 1940.

Não foi a primeira vez que Carolina apareceu num jornal. Em fevereiro de 1940, ela foi até a Redação da Folha da Manhã e conseguiu ser recebida pelo repórter Willy Aureli. O jornal estampou uma foto dos dois e reproduziu um dos poemas da escritora. "Carolina Maria, poetisa preta", dizia o título.

A reportagem de Audálio teve repercussão muito maior, mas o jornalista foi implacável com o próprio trabalho ao revê-lo para seu livro, em 2012. Achou o texto piegas e lamentou ter omitido os nomes dos filhos de Carolina —João José e José Carlos, já falecidos, e Vera Eunice, hoje com 67 anos.

"A despeito de todas as falhas [...], considero até hoje que aquela foi a mais importante reportagem que fiz em toda a minha carreira", ele escreveu. A história de Carolina causou sensação entre os leitores do jornal, despertou o interesse de editoras e catapultou a escritora e o repórter para a fama.

Nascido em Tanque d'Arca, um povoado no interior de Alagoas, Audálio mudou-se para São Paulo na adolescência e entrou na antiga Folha da Manhã em 1954. Começou trabalhando no laboratório fotográfico, aprendeu a fotografar com o italiano Luigi Mamprin e logo passou para a reportagem.

Não tinha feito faculdade, mas gostava de escrever e chamou a atenção dos colegas, numa época em que os donos do jornal estavam investindo na profissionalização da Redação. "Parecia que ele tinha nascido sabendo fazer aquilo", diz o jornalista José Hamilton Ribeiro, que o conheceu nesses anos.

Em 1956, quando a segunda usina hidrelétrica do complexo de Paulo Afonso estava em construção na Bahia, Audálio viajou para ver de perto o impacto das obras e acabou produzindo dezenas de reportagens sobre outros assuntos, que foi encontrando na viagem pelo Nordeste e na volta a São Paulo.

O êxito alcançado com a descoberta de Carolina abriu outros caminhos para o jornalista, que deixou a Folha em 1959 para trabalhar na revista O Cruzeiro, então o semanário mais importante do país. Audálio publicou ali uma segunda reportagem sobre a escritora, com novos trechos dos seus diários.

Ele editou os dois livros publicados por Carolina em vida, "Quarto de Despejo" (1960) e "Casa de Alvenaria" (1961) e guardou 14 cadernos da escritora por décadas, até doá-los à Biblioteca Nacional em 2011. A Companhia das Letras prepara a publicação das obras completas de Carolina, que morreu em 1977, aos 63 anos.

A relação da escritora com o repórter teve altos e baixos, como mostram várias passagens de "Casa de Alvenaria" que ele manteve. "Minha mãe às vezes reclamava, mas ele foi a única pessoa em quem confiou a ponto de entregar seus cadernos", diz Vera Eunice. O livro será relançado em agosto, em versão integral.

Em 1975, Audálio deixou a agitação das Redações para assumir a presidência do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo. Era admirado pelos colegas e foi chamado para tomar a frente de um movimento que fazia oposição ao comando da entidade e à ditadura militar que governava o país.

Sua liderança foi posta à prova poucos meses após a posse, quando o jornalista Vladimir Herzog foi encontrado morto numa cela do DOI-Codi, o mais brutal centro de torturas do regime. O corpo estava pendurado por uma tira de pano atada à grade da cela, como se ele tivesse se enforcado.

Audálio evitou afrontar os militares, mas convocou a categoria para o enterro, ampliando a repercussão de um evento que famílias de outras vítimas da ditadura tinham realizado com discrição, e dias depois ajudou a organizar um culto ecumênico em homenagem a Herzog na Catedral da Sé.

O ato religioso reuniu milhares de pessoas num protesto silencioso contra o crime dos militares e representou um marco da oposição à ditadura. "Se fosse outro no sindicato, teriam matado o Vlado e nada teria acontecido", diz o jornalista Sergio Gomes, que também foi alvo da onda de prisões que atingiu Herzog.

Audálio deixou o sindicato alguns anos depois e foi eleito deputado federal pelo antigo MDB em 1978. Exerceu apenas um mandato e voltou à reportagem nos últimos anos de vida, escrevendo biografias de escritores para crianças e um livro sobre a morte de Herzog e a atuação do sindicato na ditadura.

AUDÁLIO DANTAS (1929-2018)

Nascido em Tanque d'Arca (AL), trabalhou como repórter na antiga Folha da Manhã de 1954 a 1959. Foi repórter e editor das revistas O Cruzeiro, Quatro Rodas, Realidade, Manchete e Nova. Presidiu o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo e a Federação Nacional dos Jornalistas. Foi deputado federal, eleito pelo MDB, de 1979 a 1983. Publicou "As Duas Guerras de Vlado Herzog" (Civilização Brasileira, 2012), "Tempo de Reportagem" (Leya, 2012) e outros livros. Morreu de câncer de intestino em 2018, aos 88 anos.

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