Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Zicartola foi um lugar puro e bom de encontro para o melhor do samba carioca

Livro relembra trajetória do bar icônico da capital do Rio de Janeiro, que foi fundado por Cartola e dona Zica

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Não faz muitos dias que falei para a historiadora Angélica Ferrarez —que, entre outros méritos, é uma das curadoras da exposição "Pequena África", atualmente em cartaz no Instituto Moreira Salles— e Maurício Barros de Castro —professor e pesquisador— que conheci Cartola quando tinha por volta de 14 anos.

Os dois se espantaram, principalmente Maurício, que acaba de lançar o livro "Zicartola: Política e Samba na Casa de Cartola e Dona Zica", uma reedição revista e ampliada, obra muito bem ilustrada, documentada e que traz na contracapa textos assinados por Emicida, Luiz Antonio Simas e Teresa Cristina, e orelha de Cacá Diegues, com edição da Cobogó.

Passei a explicar para eles a minha "situação" com Cartola, ocorrida pelos idos de 1976 ou 1975, por aí, no bairro de Padre Miguel, na Zona Oeste do subúrbio carioca do Rio de Janeiro.

Eu sempre achei que tinha uma "quedinha" para as artes em geral. Certamente, pensando que podia ser compositor, e, pior, de escola de samba, fui procurar Mestre André na quadra da Mocidade Independente de Padre Miguel, cuja sede ficava entre a estação de trem e a localidade de Moça Bonita.

Nunca tinha estado na quadra de uma escola de samba, menos ainda com o Mestre, que tampouco fazia a menor ideia de quem eu era. Não deu outra. Passei horas esperando o pai das "paradinhas" do Carnaval carioca, grande ritmista e baterista, fundador da escola e um dos seus dirigentes, sentado em uma cadeira de plástico.

Cartola observa o cantor Sérgio Cabral e o sambista Ismael Silva (ao violão); ao fundo, os pesquisadores da cultura carioca Jota Efege e Eneida Moraes, no bar Zicartola, no Rio de Janeiro - Divulgação/Acervo da Biblioteca Nacional

Jovem sonhador, me portei como quem vai ao encontro de uma grande autoridade, que Mestre André na verdade era. Vesti a melhor roupa e calçado; penteei o cabelo para o lado, após aplicar gel, coloquei no envelope pardo os manuscritos de minhas composições. Sentei na entrada da quadra e esperei horas a fio, debaixo de um calor infernal.

Quando a bunda já doía de tanto ficar sentada, surgiu o homem, com imponente chapéu na cabeça, ao lado de alguém que eu ignorava, mas que me despertou a atenção pelo detalhe do nariz. Alguém disse: "Esse jovem quer falar com o senhor?". "Comigo?", murmurou o Mestre. "Sim", repetiu a voz. Isso me deu a deixa que eu esperava.

O maestro olhou para meu tipo físico magro e comprido, sem demonstrar qualquer afeição, e ainda sem parar, me obrigando a segui-lo para fora da quadra de samba. Foi quando falei, tomado de coragem: "Quero ser compositor".

Mestre André me olhou desta vez de forma zombeteira, esticou mais os passos, e segurando no braço amigo ao lado, estalou os beiços: "Cartola, o moleque quer ser compositor?". Rindo, desapareceu com o vento. Eis aqui, em resumo, minha "relação" com Cartola que jamais se repetiu.

Passados tantos anos e agora lendo o belo "Zicartola", do Maurício Barros de Castro, nessa nova edição da Cobogó, fico pensando que só faltou para coroar "minha carreira" de aventureiro e "entrão", ter frequentado o bar de Cartola e Zica —embora eu tivesse três anos à época da inauguração, em fevereiro de 1964—, onde teria chance de encontrar Paulinho da Viola, que ganhou seu primeiro cachê no local como músico, e Heitor dos Prazeres, genial artista plástico e compositor, que "desenhava" o cardápio da casa, cujo menu incluía "refeições caseiras", "uísque com sotaque" e a tal "cartolinha" —uma espécie de drink gelado, com cubos de gelo, além dos "pratos típicos gostosos feitos pela Zica".

Se o Zicartola marcou época desde sua abertura até seu fechamento, dois anos depois, o bar pode ser também reconhecido como ponto de encontro musical e político, bem à esquerda, dominando o burburinho da cidade, com mesas frequentadas por Dorival Caymmi, Tom Jobim, Nara Leão, Elton Medeiros, Aracy de Almeida, Nelson Cavaquinho e Carlos Lyra, este falecido no último sábado (16).

Com tanta gente boa, se apertando em um ambiente lotado, o sucesso inaugural foi estrondoso, mas não o bastante para deixar de incomodar vizinhos e a polícia, numa época que já imperava a mordaça do terror, com o advento da ditadura militar.

Apelidado de o quartel-general do samba, o Zicartola teve padrinhos ilustres, como Hermínio Bello de Carvalho e Sergio Cabral (o pai), tidos como seus intelectuais. Mas não resistiu. Logo a tradicional rua da Carioca despejaria seus anfitriões, enquanto a jovem burguesia criadora da bossa nova carregaria a inovadora ideia de reunião de bambas para a orla da Zona Sul, perto do mar e longe da insegurança do Centro da cidade.

João Antônio, nosso grande escritor esquecido, seu frequentador e cronista, disse sobre esse fim: "Morreu o Zicartola, das cores da Mangueira e de todas as outras escolas. Puro e bom."

Sem dúvida, foi "puro e bom", e por isso o lugar privilegiado de encontro do melhor do samba carioca.

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