Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Aumento da miséria e armamentismo põem o povo contra o próprio povo

O imaginário do valente diz que é preciso proteger os bens materiais da massa de bucho vazio e sem mérito

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"Pegar no ferro" é expressão que marcou a infância e adolescência de muitos jovens que, como eu, não mais tão jovem assim, desde cedo viram a violência nua e crua, na calçada, na esquina de casa, nos quarteirões vizinhos, no concreto do dia a dia.

Arma nunca foi segredo, não sumia na penumbra, tal qual o fogo. Reluzia, muitas vezes, os raios solares de um domingo qualquer ou, sobre a mesa do boteco, parecia repousar também entorpecida pelo álcool. Às vezes, dentro de mercadinhos, pendurada na cintura de quem desfilava à paisana, passeava por entre crianças, idosos, alvos, ainda que não mirados. Variadas eram suas aparições, mas nunca seu propósito —intimidar.

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O presidente Jair Bolsonaro defende o porte de armas em post no Instagram - Reprodução/Instagram

Há quem leve a sério sua própria literatura em vida e a misture à percepção fabulosa do meio social em sua concretude. Abstrai da existência medíocre que lhe confere capítulos de angústia e sai em busca de qualquer aventura que lhe trace o semblante de um Quixote, e não de um Sancho Pança.

Um Alonso Quijano que, hoje, perverso seria, diferentemente do descrito por Cervantes. Raivoso, emocionado e contra qualquer resquício de racionalidade em sua concepção de mundo, o que lhe espera é a glória —ou Glock— destinada aos cavaleiros honrosos da pátria defendida.

Saliva ao ansiar por um futuro próximo no qual poderá caminhar com sua quadrada pelas vias do conhecido bairro ou desconhecido beco, tendo como norte seu idealismo revanchista, que o faz montar e galopar na vendeta. Todos saberão que com ele é preciso tomar cuidado. Seu propósito? Intimidar.

Quem passa as semanas compondo odes nas quais armas de fogo mais parecem musas provavelmente não experienciou como estas atuam em territórios onde as motivações para se disparar são, antes de tudo, humanas. Demasiadamente humanas e, por isso, influenciadas pelo clima e condições sociais impostos —ou provocados. Guarda-se na lembrança, ainda, a memória dos pipocos. Um arsenal que nunca trouxe verdadeira segurança.

Estourou no peito do taxista numa tarde, enquanto brincavam as crianças na rua. O sangue manchou sua camisa branca e os olhos dos menores. Berrou na madrugada e fez com que despertasse a vizinhança para encontrar, nos telhados, o corpo do jovem que fugia de um provável desacerto cobrado na bala.

Furou postes numa troca de tiros às 15h de uma semana qualquer. Adentrou o portão de uma casa a ponto de pôr em risco a vida de seus moradores. Com a ponta do cano, abriu a porta do quarto do jovem que dormia durante o descanso de final de semana. Se tivesse reagido com susto à invasão sem mandado, não amanheceria para redigir estas palavras.

Aproximadamente 15 anos antes, foi oferecida por R$ 5 ou em troca de um skate para dois meninos que conversavam na frente do portão. Era um "canela seca". Armas, no fundo, nas regiões profundas da metrópole, nunca foram símbolo de proteção. Foram, na verdade, a expressão óbvia da mirrada segurança pública que, em diversos episódios, misturou-se ao crime.

Fala-se em porte e posse de armas. Falam muito —ainda que em um grupo pouco— aqueles que talvez confundam seus gatilhos psicológicos com os do revólver. Aguardam o prometido pelos senhores da retórica belicosa —proteção contra o inimigo de amanhã. E quem seria este vilão?

O país se afunda em mais miséria, e por décadas terá que resistir. A pobreza avança com o impulso da fome que, no apogeu da exasperação, abocanha o desespero para não morrer. Um país de desesperados que, mesmo se por ventura quisessem, não teriam condições de se armar.

Por outro lado, o imaginário do valente e perverso aventureiro diz: há que se defender destes desenganados famintos! Há que se armar contra um povo que, na ideia reativa do armamentista, tem "cara de bandido".

Proteger seus bens materiais da massa de bucho vazio que se forma e que não é fruto caído de um governo seco e infértil, mas sim do insucesso de responsabilidade exclusiva do indivíduo sem mérito. Há que se armar as classes médias. Já as pobres, entre uma pistola e um quilo de carne, entre munição e feijão, sabem bem com o gastar o dinheiro que quase nunca têm.

A estas populações, fome e desespero, e sua única e verdadeira arma contra o destino alvejado pelo imaginário de Quixotes perversos é sobreviver com o mínimo de dignidade, contrariando as estatísticas, sem se intimidar.

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