Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Dizer que não se trata de política é escolha política velada

Como negar que a contratação de um técnico de futebol também pode ser política?

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Há os que neguem. São eles, geralmente, os mais cientes de que toda ação cujo impacto modela ou condiciona o espaço público, a vida pública, é uma escolha política. A retórica, enquanto ferramenta discursiva, pode até contribuir para a tentativa de camuflar a aparente tomada de decisão que, por essência, não abandona idealismos, negociações e, no mais, relações de poder.

Há quem negue, mas toda escolha política carrega em si discursos que tentam se integrar ao cotidiano como se discursos não fossem. Como se não passassem de mero relato ou retrato de uma realidade monocular. Vê-se posta, com uma perspectiva —e só com ela, a escolha. Com o lado cego, nega-se o véu de luz sobre as decisões de natureza politizada. Nos cantos que ninguém vê, entre um detalhe e outro, está a mensagem.

A vasta bibliografia que estuda comunicação, linguística e elementos que compõem o discurso dá conta, em muito, de levantar o debate sobre as escolhas políticas na esfera cotidiana. Trato, aqui, do que propositalmente é difícil de identificar enquanto elemento político, até mesmo pelo vício em achar que se pare e se cria, unicamente, a política, nos acolhedores braços partidários.


É uma escolha política chicotear, ao ar livre, sob o sol de sempre, com uma coleira de cachorro, um homem negro? Dizer-se-á que nada tem a ver com racismo. Mera coincidência, acaso. Que na verdade são sempre os outros que veem política onde não há.

Max Angelo dos Santos chega a delegacia para depor sobre agressão feita por Sandra Mathias Correa de Sá - Gabriel de Paiva/Agência O Globo

Quando se desenha no título de um editorial ou reportagem traços finos e sutis do aviso a governos, população, empresariado, inequívoco é o apontar de dedos que revela uma escolha política. O léxico não é tímido nem obsoleto. Sabe bem quais termos usar e quais descartar. Gastança ou investimento público? Irresponsabilidade fiscal ou responsabilidade social? Invasão ou ocupação? Ordinária constatação do óbvio ou sofisticação do oculto? Entrelinhas ou negritos? Ênfase e escolha.

Como negar que a contratação de um técnico de futebol também pode ser política? Calar-se diante de um passado que ainda repercute no presente, relativizar o que ele significa no debate público, é uma escolha política.

Nas tantas camadas que hoje estratificam redes sociais, o dito mero incentivo à violência concreta parece ser apenas uma exceção, um desvio de caráter, e não, fundamentalmente, resultado de escolhas políticas. Escolhe-se cooptar, recrutar, manipular e politizar as ações de outrem. É também esse um dos caminhos da política. Perversa, mas política.

Para além do espetáculo decadente de jocosos parlamentares limitados à miséria de si mesmos —e cuja única utilidade é ser inútil—, vivendo, assim, sem alternativas, da mais barata pirotecnia ideológica, penso sobre as escolhas políticas que assim não se anunciam. As que tentam passar despercebidas. Ao dizer que não se trata de escolha, faz-se a escolha de tratar politicamente.

Aimé Césarie desperta a desconfiança quando escolhe, politicamente, compor seu "Discurso sobre o Colonialismo". Apego-me a essa obra justamente por cavoucar com mãos cansadas, mas firmes, a retórica do colonizador francês e desentrelaçar de tal artimanha os nós que atavam a escolha por manter a exploração nas colônias. Fosse entre conservadores ou progressistas, ninguém queria assumir que fazia ali a escolha de manter, direta ou indiretamente, a desgraça imperialista. A libertação veio junto da escolha política por reagir. Essa que não fez questão de se esconder na negação daquilo que era. Luta pura.

Noticiário, uma coluna e dilatação de contextos, uma briga na rua narrada, as contratações de clubes, aquela entrevista de podcast dita apolítica ou isenta, um jeito de olhar e interagir com o outro, um enquadro, um retrato do pobre pintado por quem diz não o odiar. Escolhas políticas. Não é inédita a constatação. Não deve ser.

Se a escolha de tornar público um ou mais acontecimentos se põe como o mais humilde e fiel retrato da verdade sem inclinações, indago-nos: não é a própria negação do caráter político uma escolha política?

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