Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Freud além da elite

Existem atendimentos sendo feitos em praças e rodoviárias por coletivos de profissionais

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A psicanálise que Freud defendeu durante sua vida não combina com a imagem elitista que, infelizmente, ficou associada a sua prática em décadas recentes. Embora existam profissionais que vendam a psicanálise como bem de consumo para uma elite que se vangloria de pagar sessões de quatro dígitos, essa é uma distorção que não faz jus à história da psicanálise.

Em outra coluna, falei sobre como, há 104 anos, Freud mudou os rumos da psicanálise ao exortar seus seguidores a tornarem o tratamento psicanalítico acessível aos pobres. Durante vinte anos (1918-1938), quase vinte clínicas públicas foram criadas em sete países europeus, visando esse fim. Esse belíssimo movimento foi possível sob os auspícios de um governo social-democrata –daí fica fácil entender porque o sonho freudiano só se sustentou neste curto período entre guerras.

Sigmund Freud chega a Paris, vindo de Viena - 5.ago.1938/AFP

Logo o nazismo trouxe a perseguição aos psicanalistas judeus e simpatizantes, e um discurso diametralmente oposto à psicanálise: o fascismo. Não podemos esquecer que Freud morreu no exílio em Londres em 1939, fugindo do nazismo. A história se encontra na monumental pesquisa de Elizabeth Ann Danto ("As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social", Perspectiva 2019).

Já a psicanálise brasileira tem uma história com características próprias. Cada vez mais mobilizada para atender a população em clínicas sociais e em instituições públicas. Existem atendimentos sendo feitos em praças e rodoviárias por coletivos de profissionais ligados a instituições sérias. Como nos lembrou Marco Antonio Coutinho Jorge em artigo publicado na Folha, não há instituto de formação em psicanálise que se preze que não tenha essa modalidade de atendimento para a população em geral.

Desde que aportou na América Latina, a psicanálise vem encampando cada vez mais os estudos que concernem aos nascidos abaixo da linha do Equador. Nossa herança colonial, as relações raciais, o neoliberalismo, autoritarismo e problemáticas de gênero são temas que povoam a pesquisa psicanalítica e a formação dos analistas.

Essas são mazelas das quais padecemos, e não há como tratar o sujeito sem reconhecer o laço social que o engendra. Como pensar o complexo de Édipo sem levar em conta o lugar da dupla maternidade à brasileira, como nos aponta a antropóloga Rita Segato em "O Édipo negro: colonialidade e forclusão de gênero e raça" (2021)? Sem criticar a subserviência aos autores europeus? Tivemos que ouvir da boca de Angela Davis, que sua presença era dispensável para um povo que já tinha o legado de Lélia Gonzalez. Como é o "tornar-se mulher" de Simone de Beauvoir, no país do feminicídio e da transfobia? Qual o lugar da memória, tema central da psicanálise, num país que não quer saber de sua história?

Sem levar em conta essas e outras inúmeras questões, os estudos psicanalíticos se tornam sobre um sujeito fora do tempo e da história, algo impensável para o autor de "Mal-estar na cultura", "Psicologia das massas e análise do eu", "O futuro de uma ilusão", "Totem e tabu"...

Distorções individuais –práticas alienadas e achacantes– e institucionais –bacharelado em psicanálise, psicanálise cristã e outras aberrações– vão contra tudo o que os psicanalistas vêm lutando há mais de século. Nossa luta não será diferente agora.

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