Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes

Esquerdas estão comprando brigas e queimando pontes

Agro e evangélicos se transformaram em formidáveis forças eleitorais

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Imagino que aos velhos companheiros dos movimentos sociais, que têm os ouvidos do presidente, pareça natural que o agro goste da direita enquanto o MST prefere a esquerda, ou que os conservadores religiosos votem até na extrema direita, mas não em Lula. A insistência nessa hostilidade, contudo, não me parece pragmaticamente vantajosa para um governo de esquerda. Por algumas razões.

A primeira é que o agro e os evangélicos se transformaram em formidáveis forças eleitorais. Foram dois dos segmentos mais importantes para a vitória de Bolsonaro em 2018 e para a proeza da sua quase reeleição. Basta ver os mapas eleitorais para constatar a força do antipetismo em estados e municípios em que o agronegócio domina; basta consultar as sondagens sobre intenções de voto estratificadas por religião para ver a fidelidade eleitoral a Bolsonaro da base evangélica conservadora.

A segunda razão é que, embora tenham perdido a eleição presidencial, formaram uma consistente rede de mandatos que domina as casas legislativas municipais, estaduais e federais numa proporção sem precedentes, sem contar as prefeituras e até governos estaduais. Por essa razão, o PT, mesmo tendo a Presidência, até hoje não sabe o que fazer para governar sem ter certeza de obter uma maioria simples na Câmara dos Deputados.

A terceira razão é que chamá-los de "setor do agronegócio" ou "grupos religiosos conservadores" é subestimar em muito aquilo em que se transformaram. Ao redor do agronegócio e das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, formaram-se comunidades de sentimento e identidade e uma cultura política, com significados e valores socialmente compartilhados. A aversão à esquerda é parte dessa cultura.

Por fim, esses dois segmentos políticos prosperaram no bolsonarismo e continuam prósperos, apesar de o bolsonarismo estar em baixa. Crescem a cada legislatura as bancadas dedicadas aos interesses do agro ou à agenda religiosa conservadora —o boi e a Bíblia, como dizem seus detratores. Nada sinaliza o enfraquecimento das duas forças como apontadores e organizadores do voto popular e grandes formadores de bancadas temáticas, em contraste com o declínio dos sindicatos e das igrejas progressistas, que é visível e contínuo desde os anos 1970.

O problema é que, enquanto a esquerda partidária, ao governo, trabalha ou deveria trabalhar para construir pontes com esses dois universos, a esquerda de movimentos lhes antagoniza de tal maneira que, paradoxalmente, os torna mais fortes.

No meio de labaredas de fogo uma balança pende de um teto profundamente trincado. Os pratos da balança estão bastante desnivelados, no prato direito duas pesas de metal dourado (uma com a marca de silhueta de um zebu e a outra com a silhueta de uma cruz). No prato esquerdo uma pesa de metal vermelho.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 25 de abril de 2023 - Ariel Severino

O processo, ainda em curso, por meio do qual a esquerda brasileira vai trocando o seu foco na luta de classes por outro, nas lutas identitárias, tem uma grande capacidade de levar água para o moinho do conservadorismo moralista. O fim da pobreza e da miséria, por exemplo, é uma pauta que os conservadores religiosos compram; o fim do privilégio branco e da heteronormatividade é uma agenda que não entendem, mas de que desconfiam; o esquecimento da opção pelos pobres para colocar como prioridade política "as minorias historicamente oprimidas" não lhes desce bem, principalmente quando se caracterizam as tais minorias e as suas reivindicações e se ouvem os seus discursos. É simples assim: quanto mais identitária for a esquerda, mais atraentes se tornam os conservadores.

Do lado do agro, dá-se algo semelhante com o vermelho MST marchando para ocupar propriedades rurais e instituições de pesquisa. Bolsonaro prometendo classificar o MST como movimento terrorista, em 2018 e 2019, era música para quem vive da agroindústria, enquanto a volta das ocupações do MST soa como as trombetas do Apocalipse.

Em 2018, o MST estava para o agro como o "kit gay" para os conservadores, era o bicho-papão das histórias que o bolsonarismo contava. O MST e o que ele representa no imaginário do agronegócio foram o espantalho mais eficiente do bolsonarismo para tanger a boiada para o seu lado, tal o pavor que o movimento suscita. Imaginem agora o poder de ativação de memórias e sentimentos, de quem já era inercialmente antiesquerda, com um MST animado e valente, movendo-se em direção a propriedades rurais e metendo o pé na porta da Embrapa.

Mais dia, menos dia, a esquerda ao governo terá que lidar com o fato de que não lhe convém ser adversário do agro ou dos evangélicos conservadores. Falta, porém, combinar essa agenda com a esquerda de movimentos, que trabalha arduamente para semear a inimizade entre uns e outros.

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