'Ração' para humanos substitui refeições por tristeza

Colunista de gastronomia troca alimentos frescos por fórmula em pó que se propõe a nutrir sem o incômodo de comer

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São Paulo

Dizem que Tim Maia, depois de uma dieta rigorosa, disse: “Em duas semanas, perdi 14 dias”.

Eu me senti como o Tim ao trocar comida de verdade por um preparado em pó chamado Foodz. Alegadamente, o tal pó reúne todos os nutrientes de que o corpo precisa para funcionar com saúde.

Não se trata de um produto para dietas. É algo para quem não quer perder tempo comendo. Um substituto possível das refeições. Em definição menos lisonjeira, uma espécie de ração para seres humanos. Eu inventei de ser cobaia da coisa.

Em sua casa, Marcos segura duas garrafas do produto e olha para a câmera de forma desconfiada
Marcos Nogueira, do blog Cozinha Bruta, testa a refeição em pó Foodz - Zanone Fraissat/Folhapress

O Foodz vem em garrafas de plástico transparente com 125 gramas de pó. Diluída em meio litro de água, a fórmula se transforma numa bebida grossa com três opções de sabor: chocolate, cappuccino e tomate com manjericão.

Encomendei, no site da empresa, duas caixas mistas com um total de 24 garrafas. A tabela nutricional informa que uma dose fornece 24% das calorias diárias recomendadas. Logo, eu teria estoque suficiente para seis dias de quatro, bem, “refeições” cada —uma semana bíblica, com descanso no sétimo dia.

Comecei o projeto numa quarta-feira pela manhã, logo ao acordar. Para começar o dia, cappuccino. Primeiro problema: a bagaça não mistura direito. Por mais que eu sacudisse a garrafa como uma coqueteleira cheia de pisco sour, sobravam muitos grumos.

Marcos aponta para o fundo da garrafa, onde pelotas do pó não se dissolveram completamente
Marcos Nogueira mostra o fundo da garrafa, onde o pó não se dissolveu muito bem - Zanone Fraissat/Folhapress

Beber é desagradável. O líquido grosso e empelotado tem forte gosto de gordura vegetal. É doce, muito doce —resultado da presença do adoçante sintético sucralose. Não há nada que lembre café. Demorei oito minutos para tomar tudo. Comeria fácil quatro pedaços de pizza nesse tempo.

O almoço, engolido no fim da tarde, foi pó de tomate com manjericão. Definitivamente, o mais detestável dos três sabores. A sucralose é uma nota persistente, que não sai nem na escovação. Credo.

As quatro garrafas diárias se converteram em duas. Eu sofria ao pensar que precisaria beber aquilo outra vez em breve. Era melhor dormir com um pouco de fome.

Para ser justo com o Foodz, a sensação de saciedade persiste como o gosto da sucralose. Não mata a vontade de comer, mas mata a fome. No dia seguinte, provei o de chocolate. Como esperava, o mais tranquilo de todos. Parece chocolate barato, de baixa qualidade: uma mistura doce de castanhas, gordura de coco e algo de cacau.

Seis garrafas transparentes com o pó ainda não diluído em água
Garrafas com o pó Foodz antes da diluição em água - Zanone Fraissat/Folhapress

Conheci o Foodz por uma mensagem que Morgan Dierstein, o criador da marca, me enviou no Linkedin —a mais abandonada das minhas redes sociais. Ele descreveu o produto como “parecido com a Soylent dos Estados Unidos”.

Soylent é uma ração humana inventada em 2013 por Rob Rhineheart, um engenheiro de computação do Vale do Silício, na Califórnia.

Ele não queria interromper o trabalho para comer. Então, pesquisou a composição de uma refeição nutritiva e comprou os 35 elementos necessários —muitos deles, produtos químicos que nada têm a ver com cozinha.

O nome do produto norte-americano foi tirado de “Soylent Green”, filme de distopia futurista lançado em 1973. Na obra, apenas os ricos têm acesso à comida de verdade. Todo o resto se alimenta de uma ração que, descobre-se no final, é feita de cadáveres humanos.

No Brasil, o título de “Soylent Green” virou “No Mundo de 2020”. Adequado.

Procurei Morgan para uma entrevista. Esperava falar com um farialimer, mas era um francês de Paris. Como tal, apaixonado por comida. Que frequenta o Chez Claude, restaurante de Claude Troisgros, para reencontrar os sabores de sua terra.

Por que um cara assim se meteu nesse negócio?

Morgan buscou desfazer a comparação com o Soylent —“uma visão muito triste”. Disse que a proposta do Foodz não é substituir a comida, como uma ração, mas ser uma opção prática e saudável quando é impossível uma refeição nos conformes.

“Não consigo comer besteira”, contou o empreendedor. “Queria algo nutritivo, para me sentir saciado sem digerir uma coxinha por quatro horas.”

Já o site do produto afirma que comer apenas Foodz o dia todo, no café, no almoço e no jantar não tem contraindicações nem oferece riscos “do ponto de vista nutricional”.

Mandei a lista de ingredientes para o professor Carlos Monteiro, coordenador do Nupens —Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, da USP. Ele me respondeu com um “afe!”.

“É um monte de nutricionismo, pseudociência”, disse. O nutricionismo é um sofisma —aceito por muitos profissionais de saúde– que propõe a falsa equivalência entre o alimento e a soma de seus nutrientes.

Se uma maçã fosse decomposta em açúcar, fibra e mais 118 substâncias, um adepto do nutricionismo buscaria esses 120 componentes, vários sintetizados em laboratório, para replicar a maçã. Mas não funciona assim. A alimentação é algo muito mais complexo do que uma conta de adição.

Aos poucos, descobri macetes para deixar a rotina mais tolerável. Gelei a bebida no limite da estupidez. O curso de sommelier de cerveja me ensinou: o frio anestesia o paladar. É ruim para as boas cervejas; assaz conveniente para as ruins —e para o Foodz.

Outra coisa que aprendi com a cerveja —em particular, com as competições de chope por metro— foi engolir grandes volumes de líquido sem intervalo para respirar. O shake de ração agora descia todo em um minuto ou dois.

Incluí na dieta café e limonada gasosa, ambos sem adoçar. Trapaceei de leve ao turbinar com cacau em pó as garrafas de sabores cappuccino e chocolate —não precisei tomar mais as de tomate, aleluia!

E, para exercitar a mandíbula, retomei depois de uma década o hábito de mascar chiclete.

Quinta e sexta-feira transcorreram suaves comigo em casa, sozinho, triste e resignado. No sábado, encontrei a família em Atibaia. Resisti bravamente à macarronada do jantar, sentado à mesa com garrafa plástica em punho.

No almoço de domingo, capitulei. A churrasqueira foi mais forte. Não dá para resistir a um churrasco.
Foram quatro dias e uma manhã à base do tal Foodz. Na lógica de Tim Maia, ganhei dois dias —dos seis que eu já tinha dado por perdidos.

Ração para viver

O que é
Um preparado em pó que se propõe a substituir uma refeição completa

Ingredientes Principais
Maltodextrina (carboidrato extraído de vegetais como milho, arroz ou batata)
Proteína de girassol
Fibra de milho
Óleo de girassol
Triglicerídeos de cadeia média (TCM, uma espécie de gordura)
Sucralose (adoçante sintético)

A nutrição*
Valor calórico 24%
Carboidratos 21%-22%
Proteínas 33%-34%
Gorduras totais 29%-30%
Gorduras saturadas 29%-30%
Fibras 33%-34%
Sódio 2%-4%
Vitaminas 34%-35%
*dos valores diários recomendados (VD), em uma garrafa

Uma garrafa pronta contém
125 gramas de pó
500 mililitros de água

Quanto custa
R$ 24,90, uma garrafa de Foodz
www.foodz.store

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