Sopa nem é janta?

Inverno traz a efervescente polêmica gastronômica sobre um de seus pratos mais tradicionais

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São Paulo

O brasileiro precisa ser estudado, diz um meme da internet. Concordo: como se o país não estivesse virando farofa, encontramos tempo para acalorados debates gastronômicos. É biscoito ou é bolacha? Cuscuz paulista é aceitável? É cuscuz? É comida?

O inverno, ano após ano, traz a efervescente polêmica gastronômica sazonal: sopa é janta? Vivemos numa sociedade em que açaí com granola pode ser almoço. Em que pastel de calabresa substitui o café da manhã na feira. Nesse contexto, é óbvio que sopa pode ser janta.

Mas atenção: “pode ser” não significa “é”. Ser ou não ser depende da sopa e da ocasião.

Chamamos de sopa quase todo alimento líquido, do mais ralo consomê (não é janta) à espessa açorda portuguesa, uma papa feita com pão (é janta). Quanto mais pedaçuda e substanciosa a sopa, mais próxima da refeição completa.

Sopa de abóbora do restaurante Animus, em Pinheiros - Divulgação/Thays Bittar

É longa a lista de sopas parrudas. O lámen japonês e seus infinitos complementos. A bouillabaisse marselhesa, com metade da fauna do Mediterrâneo. A sopa de pedra portuguesa, praticamente uma feijoada. Cappelletti in brodo, gumbo da Louisiana, chupe peruano, aquela canja que é quase risoto.

Sopa de gente rica tende a ser uma entradinha, o esquenta da atração principal. Na culinária camponesa, ela cumpre a função de multiplicar o volume da comida: na água fervente, um pouco de carne (ou osso) e temperos enchem de sabor alimentos energéticos como arroz ou batata.

“Você pode colocar tudo numa sopa”, afirma a chef Giovanna Grossi, do restaurante Animus, em Pinheiros. “Ela concentra nutrientes e sabor, é mais refeição do que muito prato por aí.”

Giovanna se diz “a louca da sopa”. “É a comida mais prática que tem”, acha. A falta de tempo e/ou paciência para cozinhar uma refeição de vários pratos é outro fator que transforma a sopa em janta: vai tudo numa panela só, simplificando a lida no fogão e na pia.

Ou nem isso. Você pode comprar litros de sopa para consumir aos poucos. Giovanna percebeu a demanda e incluiu quatro sopas congeladas —mandioquinha, lentilha, carne e abóbora— no cardápio de entrega do Animus.

O sucesso da iniciativa fez com que a chef incluísse uma sopa (o sabor varia semanalmente) no menu degustação de inverno. São apenas porções pequenas para compartilhar, e não é possível pedir a sopa isoladamente —no Animus, sopa não é janta para o cliente presencial.

Sopa de abobrinha da chef Giovanna Grossi - Divulgação/Thays Bittar

O empresário Ricardo Ayres apostou todas as fichas na sopa congelada. Dono de um serviço de catering para eventos corporativos, ele percebeu no na pandemia que o setor seria duramente atingido. Já em março de 2020, lançou a marca Souper, vendida online.

“O negócio está crescendo no boca a boca, por indicações. As pessoas compram muito para viagem”, diz. Neste caso, a viagem é literal: o grupo vai passar uns dias na casa de praia ou de campo e, para não ter de cozinhar, leva um estoque de sopa congelada. “Nossa embalagem aguenta seis horas sem degelar.”

Todos os oito sabores da Souper são vegetarianos. Seis são veganos —as exceções são o caldo de feijão (com massa de ovos) e a sopa de cebola (com queijo ralado). Foram criadas assim a pedido de um dos sócios, judeu que segue a alimentação kosher. Incidentalmente, atendem aos desígnios do consumidor moderno.

Há outro tipo que se lixa para a modernidade. E para quem sopa é janta, sim senhor: é o frequentador dos bufês de sopa de padaria.

Ele prova que sopa pode ser várias jantas na mesma noite. Enche o pires de torradas de alho e flana do creme de ervilhas ao minestrone, da sopa de aspargos ao feijão branco com paio.

A tradição se eleva a outro patamar quando se fala do festival de sopas do Ceagesp, no ar de maio a agosto desde 2009 —mas de origem ainda mais cringe.

“Criei o festival para a festa dos 40 anos do Ceasa, antigo nome do entreposto”, diz Jair Legnaioli, concessionário do restaurante que serve as sopas e outros festivais temáticos.

Jair conta que, na década de 1970, era famosa em São Paulo a sopa que o Ceasa servia madrugada adentro. “Naquela época, nenhum restaurante abria tarde da noite”, relembra. “O pessoal começou a vir depois das festas, para tomar a sopa que era vendida aos trabalhadores noturnos.”

O empresário alega ter feito muita pesquisa para chegar a uma receita semelhante à sopa original do Ceasa —à base de caldo de ossos bovinos e cebola, gratinada com pão e queijo a exemplo da soupe à l’ognion da tradição francesa.

A cebola ainda puxa as vendas —Jair diz cozinhar 1200 quilos delas toda semana—, mas a variedade do festival faz brilhar os olhos do entusiasta sopista. Tem sopa de frutos do mar, de pera com roquefort, de siri e até sopa doce de chocolate.

O evento nos armazéns chegou a atrair 1.500 pessoas por noite. Era sopa atrás de sopa até as 2h da madrugada, mas depois o fluxo de boêmios diminuiu e o restaurante passou a fechar à meia-noite. Ano passado, devido à pandemia, funcionou com sistema de entrega e retirada.

A farra das sopas volta ainda um pouco acanhada este ano, pois as regras sanitárias só permitem o atendimento em restaurantes até as 21h. A gente aqui torce com força para que a peste passe logo. E para que a sopa, além de janta, possa voltar a ser ceia.

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