Novo uísque nacional machuca o bolso, mas faz bonito no copo

Brasil engatinha na produção de 'single malts' com qualidade e personalidade

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São Paulo

O sarro foi geral quando contei, no grupo de amigos de faculdade, que iria a uma degustação de uísques nacionais. Só faltaram propor uma vaquinha para me comprar um fígado novo no mercado negro de órgãos. A reputação dos uísques fabricados no Brasil é péssima e merecida.

O país já tem longa tradição na produção de substitutos baratos para a bebida escocesa. Em muitos casos, ao destilado de malte se misturam o álcool de cana, corante e aromatizante —tal líquido não pode ser rotulado como uísque, apesar do nome em inglês que ilude o consumidor.

Quatro opções nacionais de uísque das destilarias Union e Lamas - Bruno Santos/Folhapress

Mas nem só de engasga-gato vive o uísque nacional. Na última década, a modinha global dos destilados “craft” encorajou alguns poucos bravos empreendedores a engarrafar bebida boa.

São destilados brasileiros que competem com o “scotch” tanto em qualidade quanto em preço. Dentre os desbravadores do malte brasuca, destacam-se a destilaria gaúcha Union e a mineira Lamas.

A trajetória da Union se confunde com a própria história da fabricação doméstica de uísque. Fundada como vinícola, a planta de Veranópolis (Serra Gaúcha) foi adquirida em 1970 pela família Borsato e logo convertida em destilaria.

Até ali, a referência em uísque nacional era o ainda existente Old Eight —marca criada por Fabrizio Fasano, pai do restaurateur Gero, ex-Rogério. A Union entrou no setor para se tornar a maior do país: hoje, suas fábricas jorram algo como 3 milhões de litros de uísque por ano, o equivalente à produção da escocesa Talisker, pertencente ao conglomerado Diageo.

Por quase meio século, a Union prosperou como fornecedora de destilado a granel para marcas “bottom shelf”. Literalmente, o termo se refere à prateleira mais baixa da gôndola do mercado. No jargão do mercado de bebidas, são rótulos baratos para o consumo de massa.

Em 2010, os gaúchos começaram a investir na criação da marca própria, com uísques de categoria similar ao “single malt” escocês (veja glossário). Construíram uma segunda fábrica em Bento Gonçalves, que ficou pronta em 2015. A primeira garrafa do novo projeto saiu em 2019.

“Viemos para Bento olhando para o turismo”, conta Luciano Borsato, diretor-executivo da Union. A fama dos uísques foi além dos visitantes do Vale dos Vinhedos em busca de algo além de espumante e merlot.

A coisa deu tão certo que a Union lançou uma série chamada Autograph, laboratório para experiências com longa maturação, barris especiais e preços dignos de Edimburgo.

Esse tipo de ousadia é o negócio central da Lamas, microdestilaria instalada em Matozinhos (região metropolitana de Belo Horizonte) pelos irmãos Márcio, Marcelo e José Carlos Lamas.

Os mineiros inventaram de defumar o próprio malte —embora a praxe seja comprar o malte já turfado de empresas da Escócia. Eles encharcam o malte comum e o expõem a uma nova secagem sobre fumaça de eucalipto de reflorestamento.

Em outra frente, os irmãos Lamas brincam com as madeiras dos barris da finalização da bebida —por lei, o envelhecimento principal deve se dar em carvalho de segundo uso.

A destilaria chegou a produzir um malte, já fora de catálogo, finalizado em amburana, madeira comum na maturação de cachaça, que confere à bebida caráter doce e abaunilhado. “Essa linha causou muita polêmica”, diverte-se Márcio Lamas. “Muita gente amou e muita gente detestou.”

Agora a Lamas lançou o malte Caboré, em que entra em cena o bálsamo —outra madeira usada nas cachaçarias. O que a amburana tem de baunilha, o bálsamo tem anis. Para suavizar a polêmica, a bebida “embalsamada” é misturada a outras duas, curtidas em carvalhos americano e europeu. “É algo para quem tem a cabeça aberta a sabores diferentes”, diz Márcio Lamas.

“A Union e a Lamas são destilarias de perfis bem distintos”, comenta Mauricio Porto, estudioso “uiscófilo” e dono do bar temático Caledonia Whisky & Co., em Pinheiros. “A Union é grande, antiga e tradicional, enquanto a Lamas se insere bem no movimento ‘craft’, pequena e experimental, mas sempre com muito capricho.”

Foi no bar de Mauricio que degustei quatro rótulos, dois de cada produtor. Lá, as doses de 50 mililitros dos uísques provados custam entre R$ 42 e R$ 64 —ou entre o dobro e o triplo do preço do litro das marcas nacionais populares.

A brincadeira começou com a amostra conservadora, o Union Pure Malt, sem defumação e envelhecido por cinco anos em barris de carvalho americano. Para Mauricio, equivale a um “single malt” escocês de entrada, como o Glenfiddich 12 anos.

Prosseguiu com o Verus, da Lamas, um pouco mais complexo, maturado em barris anteriormente usados para armazenar vinho licoroso. “É comparável ao Tamnavulin”, afirma o dono do bar.

Ficou muito séria com o Autograph Extra Turfado Wine Cask, feito com cevada muito defumada e envelhecido por nove anos, o último deles em barris de vinho tinto chileno. Segundo Mauricio, algo relacionado ao Caol Ila ou ao Laphroaig Select –dois “scotchs” da região de Islay, famosa pelos maltes secos na turfa.

Terminou de forma desconcertante com o Lamas Caledonia, rótulo feito sob encomenda para o bar, com 50% de álcool e que leva o tal malte defumado em Minas Gerais. Este, sem comparação possível com nenhuma garrafa da terra do Tio Patinhas.

Comparar, aliás, é algo a se evitar na hora de adquirir os uísques brasileiros –investir em medalhões escoceses é sempre mais seguro e às vezes mais barato. Os maltes nacionais são para quem está disposto a dar uma bicuda nessa segurança, ou, usando termos mais polidos, para romper a monotonia.


Union Pure Malt

40% ABV

Bento Gonçalves, RS

R$ 150 (750 ml)

www.uniondistillery.com.br

Lamas Verus

43% ABV

Matozinhos, MG

R$ 186 (1 litro)

www.bagy.app/lamasdestilaria

Union Autograph Extraturfado Wine Cask

46% ABV

Bento Gonçalves, RS

R$ 295 (750 ml)

www. uniondistillery.com.br

Lamas Caledonia II

50% ABV

Matosinhos, MG

R$ 230 (1 litro)

www.caledoniawhiskyco.br


GLOSSÁRIO DO UÍSQUE

ABV – sigla do inglês “alcohol by volume” (“álcool por volume”), que indica o teor percentual de álcool na bebida

Barril de segundo uso – diz-se do barril que já armazenou outra bebida antes de ser usado para envelhecer o uísque. O emprego de barris reciclados suaviza as propriedades aromáticas transferidas da madeira para a bebida

Blend – mistura de uísques de diferentes origens

Blended whisky – bebida obtida pela mistura de uísques de malte e uísque de cereais

Bourbon – a principal denominação do uísque americano

Carvalho – o uísque deve, por obrigação legal, ser envelhecido em barris feitos com madeira de árvores do gênero “Quercus”, sempre de segundo uso. Na Escócia, são predominantes as barricas de carvalho americano (anteriormente usadas para armazenar Bourbon) ou europeu (reaproveitadas da produção de jerez, vinho fortificado espanhol)

Grain whisky – uísque de cereais não-maltados, como trigo ou milho

Malte – feito, em geral, de cevada. O grão é posto para germinar: quando o amido se converte em açúcares, o processo é interrompido pela secagem do grão.

Scotch – nome genérico do uísque escocês

Single malt – uísque de malte produzido por uma única destilaria

Turfa – matéria orgânica decomposta, comum no solo escocês. Desidratada, a turfa é combustível das fornalhas que secam de alguns maltes –o processo confere a eles um forte aroma defumado

Whiskey – grafia adotada na Irlanda e nos Estados Unidos

Whisky – grafia adotada na Escócia e no Canadá

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