Drinque servido na posse levanta debate sobre coquetelaria brasileira

Para especialistas, bebidas também podem representar diferentes identidades culturais do país

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São Paulo

De cor roxa conferida pela flor da clitória, planta asiática, o gim-tônica servido na posse presidencial no Itamaraty levantou, dias depois, debate sobre a ausência de ingredientes, técnicas e receitas nacionais. Para mixologistas e pesquisadores, a ocasião se tornou um momento para refletir sobre como anda a coquetelaria brasileira.

Entre os pratos oferecidos na recepção do dia 1º estavam bolinho de piracuí (farinha de peixe seco típica da Amazônia), acarajé e arroz carreteiro.

Chicócktail, receita servida no bar Muamba, em Belém
Chicócktail, receita servida no bar Muamba, em Belém - Kaue Barp/Divulgação

O site Mixology News, especializado em bebidas, elogiou a "brasilidade" da composição, mas lembrou que a lógica também poderia ser usada nas escolhas etílicas —com destilados (como a tiquira, popular no Maranhão) ou bebidas típicas (caso do aluá, fermentado à base de ingredientes como abacaxi).

"Podemos falar de várias identidades culturais no Brasil e, por consequência, expressões gastronômicas. Mas as bebidas acabam ocupando lugar secundário", diz Renato Monteiro, professor de bebidas do curso de gastronomia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Monteiro afirma que, para se avançar no debate sobre coquetelaria brasileira, é preciso identificar tradições de bebidas nacionais, inclusive pré-coloniais, com apoio de universidades, centros de pesquisa e profissionais do setor.

"Definitivamente ainda não se entendeu que o que você bebe revela o lugar de onde você vem. A bebida pode representar uma ‘decolonização’, um ciclo virtuoso de produtores, de ingredientes e de técnicas de um povo. A coquetelaria também está neste lugar", diz Néli Pereira, mixologista e pesquisadora.

No fim do ano passado, ela lançou o livro "Da Botica ao Boteco – Plantas, Garrafadas e a Coquetelaria Brasileira" (ed. Companhia de Mesa; 208 págs.; R$ 59,90), em que é possível ter um panorama histórico de como bebidas com funções medicinais deixaram receituários e foram parar em bares.

Além de mencionar exemplos de líquidos que fizeram essa transição no mundo, como o licor Chartreuse, a publicação destaca técnicas e ingredientes brasileiros.

Um desses exemplos é a garrafada, nome que deriva dos remédios preparados por jesuítas dentro de grandes tonéis —e que, segundo a pesquisadora, são fruto do conhecimento dos povos originários sobre plantas, raízes e cipós.

A mixologista estuda o sabor desses elementos desde 2013, e em 2016 lançou sua primeira carta de coquetéis brasileiros no Espaço Zebra, na Bela Vista, centro de São Paulo, que hoje funciona algumas noites por mês com reservas antecipadas.

Um dos ingredientes usados ali é a jurubeba, planta comum em preparos medicinais com funções hepatoprotetoras e originária do Rio Grande do Sul. Ela virou protagonista do umami jururu, com o fruto da planta embebido em vodca e Cynar, de sabores amargos e herbáceos (R$ 35).

Para Márcio Silva, à frente do reality show Bar Aberto e mixologista premiado, conhecer o contexto histórico de ingredientes e de produtores é parte do desenvolvimento de uma coquetelaria nacional.

"Usar caju é fazer coquetelaria brasileira? Conhecer o ingrediente e a cultura em torno dele é o que traz genuinidade. Neste momento, acredito que a coquetelaria do país está em desenvolvimento."

Ao abrir o Muamba Bar em Belém (PA), em 2019, a intenção de Yvens Penna era falar de coquetelaria na cidade "e não só ter um bar que servia drinques com bacuri". Como a maior parte do público é local, ele se utiliza da ligação do belenense com sua comida para fazer receitas regionais.

Em um deles, a chicória, planta usada para temperar o tucupi, é ingrediente de uma margarita gaseificada. Em outro, faz um xarope de urucum para usar em um pisco sour.

Três anos depois de abrir o bar, Penna criou um projeto chamado Amazônia Sour, que tem a intenção de ser "um acelerador do processo para se ter uma coquetelaria identificada como amazônica". A ideia é atuar em diversas frentes, como a qualificação de produtores e de mão de obra.

Com apoio do Sebrae e da Universidade da Amazônia, o projeto ofereceu treinamento a 110 profissionais no ano passado para falar de temas como história da coquetelaria e hospitalidade. A ideia é que, neste ano, o resultado seja visto em um circuito de coquetelaria amazônica envolvendo bares, restaurantes e hotéis da capital do Pará.

"Basicamente o que fazemos é antropofagia: trazer referências de fora e usar com essa profusão de frutas, folhas e sementes. Temos ingredientes humanos e naturais para formar uma cena de coquetelaria por aqui", diz.

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