Você beberia água de reúso? E se fosse cerveja?

Cervejarias trabalham para conscientizar sobre a necessidade de reutilização da água e superar o "fator nojo" das pessoas

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Claire Fahy
The New York Times

A Epic OneWater Brew é bem parecida com a cerveja artesanal hipster clássica. A lata tem um design elegante com a silhueta do horizonte de uma cidade e se abre com um assobio satisfatório. A cerveja, uma Kölsch, tem um tom dourado nítido e um sabor frutado característico. Mas há uma grande diferença: foi feita com água reciclada.

Resultado da parceria entre uma startup de tecnologia de tratamento e uma cervejaria da Grande San Francisco, leva em sua composição a água do banho e da lavagem de roupas de um prédio de apartamentos de luxo da cidade —e não é a única desse tipo.

Cervejarias trabalham para conscientizar sobre a necessidade de reutilização da água e superar o "fator nojo" das pessoas
Cervejarias trabalham para conscientizar sobre a necessidade de reutilização da água e superar o "fator nojo" das pessoas - Cassidy Araiza/The New York Times

Com as fontes hídricas fragilizadas pelo consumo excessivo, pela estiagem e pela mudança climática, principalmente na região oeste dos Estados Unidos, os defensores da reutilização potável direta —ou seja, o uso da água residual no suprimento em grande escala – acreditam que ela seja parte da solução.

Empresas cada vez mais apostam na cerveja para fazer o público superar o "fator nojo" que impede uma aceitação maior. Segundo esse princípio, se as pessoas relutam em beber a água reciclada, talvez se mostrem mais interessadas se vier em forma de uma cerveja bem gelada.

Aaron Tartakovsky, um dos fundadores e CEO da Epic Cleantec, que se uniu à Devil's Canyon Brewing Co. de San Carlos, na Califórnia, para criar a bebida, diz que sua intenção é mostrar o "potencial infinito" da água reciclada. "Vivemos no que aqui na Epic chamamos de 'sociedade do descarta e esquece'. Tem também essa questão do asco quando se pensa em água reciclada, por causa da ideia de esgoto e tudo que está envolvido com ele."

Algumas cidades das regiões oeste e sudoeste dos EUA, que enfrentam dificuldades para conciliar o crescimento da população com o suprimento limitado de água, promovem concursos para estimular as cervejarias a criar bebidas com essa versão. A Califórnia, o Idaho e o Arizona estão entre os estados que, ao lado dessas companhias, trabalham pela conscientização da necessidade de reúso.

A cidade de Scottsdale, no Arizona, começou a regar mais de 20 campos de golfe com água residual tratada nos anos 1990. Em 2019, recebeu permissão do estado para o reúso potável direto da água reciclada e purificada. Ela ainda não foi liberada para o consumo, mas, segundo Brian Biesemeyer, diretor executivo da Scottsdale Water, isso pode mudar daqui a dois ou três anos.

Para ajudar o público a aceitar a ideia de consumir a opção residual, em 2019 a empresa municipal convidou dez cervejarias para criar um produto a partir da água que sai de sua estação de tratamento avançado e servi-lo em um festival de artes, onde cada barraca tinha um estande de informações explicando o processo em detalhes.

"A princípio, as pessoas se assustavam com a perspectiva, mas, depois de um tutorial mostrando o nível de pureza e segurança do resultado final, muitas se mostraram interessadas e curiosas em provar a cerveja. No fim, foi uma saída divertida para ajudar a superar o preconceito inicial", conta Biesemeyer.

A Desert Monks Brewing Company de Gilbert, Arizona, que participou do desafio de Scottsdale, abraçou o conceito e produziu duas cervejas com águas residuais tratadas de Scottsdale. Sonoran Mist, uma lager, rapidamente se tornou a mais vendida da cervejaria, e uma Hefeweizen será adicionada à programação no próximo mês.

Dois dos proprietários da cervejaria, Sommer Decker e John Decker, acreditam que a Desert Monks é a primeira cervejaria do país a oferecer consistentemente cerveja feita com água residual reciclada na torneira.

"Somos uma pequena cervejaria, portanto, poder obter essa água ultrapurificada de uma grande organização é mais do que podemos obter de nossos próprios sistemas neste momento", disse Decker.

As iniciativas de promoção do uso mais amplo da água reciclada sofrem com o problema de percepção, agravado pelos críticos que o denunciam descrevendo-o como um processo "da privada à torneira". Entretanto, o fato é que os pesquisadores da Universidade Stanford descobriram no ano passado que, tratada, ela é mais segura e menos tóxica do que a de certas fontes, porque é beneficiada com muito mais rigor.

Em Scottsdale, esse processo envolve infusão de ozônio, microfiltragem e osmose reversa, na qual passa por uma membrana para remoção dos minerais dissolvidos e outras impurezas. A seguir, ainda recebe um banho de luz ultravioleta. "Juntas, essas medidas removem praticamente tudo", garante Biesemeyer.

A cerveja Epic nasceu de uma portaria de 2021 exigindo que as novas construções com mais de 9.300 m² em São Francisco tivessem um programa próprio de reutilização de água. A Epic Cleantec então fechou uma parceria com o prédio de luxo no 1.550 da Rua Mission e a Devil's Canyon para transformar o líquido residual dos apartamentos —originário das lavanderias e dos chuveiros, e não dos banheiros— em cerveja. A Epic OneWater Brew não é comercializada, mas Tartakovsky diz que a serviu aos convidados de seu casamento, no mês passado.

Quando uma cervejaria de Half Moon Bay, na Califórnia, decidiu tentar trabalhar com a água residual, apelou para a ajuda de uma vizinha: a Nasa, que desenvolveu uma tecnologia de reciclagem para que os astronautas pudessem bebê-la no espaço. Assim, a Half Moon Bay Brewing Co. se aproveitou dos volumes do Centro de Pesquisa Ames, que faz parte da agência espacial, localizado em Mountain View, na Califórnia, para fazer uma IPA chamada Tunnel Vision – que, em edição limitada, foi servida em eventos por períodos restritos entre 2014 e 2017.

"Na verdade, a água era mais neutra do que a que usamos normalmente. Não dá para apontar a diferença", admite o mestre cervejeiro James Costa.

A Pure Water Brewing Alliance é uma coalizão de empresas de tratamento, cervejeiros, firmas de engenharia e empresas de tecnologia que compartilham recursos, técnicas e informações sobre o uso da água residual.

"Nosso objetivo é fazer com que a água seja avaliada por sua qualidade, e não pela origem. Temos tecnologia para limpá-la e purificá-la —e, pelo que se vê dos tempos em que estamos vivendo, vamos precisar desse recurso cada vez mais", diz Travis Loop, líder da aliança.

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