Livro de Carlos Alberto Dória derruba mitos sobre a culinária brasileira

Obra analisa como se consolidaram os hábitos alimentares no país e explora questões históricas, políticas e sociais

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São Paulo

Um certo senso comum nacionalista insiste em entender a formação da culinária (e da própria identidade) brasileira como um processo de aculturação entre diferentes sujeitos históricos a partir de sua tipificação racial. Segundo essa interpretação datada e vista como um mito, a simples mistura entre índios, negros e brancos teria construído os brasileiros e seus costumes alimentares.

É a fim de acertar as contas com essa "ideia racialista" e de lutar contra esse pensamento equivocado que o sociólogo Carlos Alberto Dória, 74, abre a discussão do seu novo livro, "Remates Culinários: Ensaios marginais à história da culinária brasileira" (ed. Tapioca).

O sociólogo Carlos Alberto Dória durante entrevista, em São Paulo
O sociólogo Carlos Alberto Dória durante entrevista, em São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress

A obra reúne artigos acadêmicos independentes em que o pesquisador complementa uma quadrilogia iniciada com as obras "Formação da Culinária Brasileira", "A Culinária Caipira da Paulistânia" (ambas pela ed. Fósforo) e a biografia "Manuel Querino: Inventor da Cozinha Popular Baiana" (ed. P55). Em todas elas, uma discussão sobre questões históricas, políticas, sociais e raciais permeia a análise sobre como se consolidaram os hábitos alimentares no país.

"O enfoque racial da culinária não funciona", diz Dória em entrevista à Folha durante um almoço no restaurante Lobozó, de que é sócio. "O senso comum confunde tudo, mistura as ideias de raça e de cultura. É importante questionar isso."

Para ele, as lutas identitárias são importantes nessa discussão, pois a linguagem que domina até hoje para tratar de mestiçagem tem problemas e vem do século 19. O pesquisador explica que a culinária foi usada no passado para pensar o processo de unificação do Brasil, oferecendo o exemplo de como a miscigenação se dava "na prática", e que hoje ela está em processo de desconstrução também por causa do atual ambiente cultural do país.

Pelo enfoque agora ultrapassado, diz, não se distinguem com clareza como as múltiplas culturas africanas puderam influir no nosso sistema culinário, desconsiderando o complexo mestiçamento de vários povos africanos. É um processo semelhante ao que acontece com os indígenas, vistos como se fossem todos iguais. "Não existe índio, existem povos indígenas. Assim como existem povos africanos", afirma Dória.

Em relação aos indígenas, Dória diz que a ideia de que eles contribuíram para a culinária nacional apenas com os ingredientes da terra corresponde a "um verdadeiro massacre cultural". "Não há ingredientes indígenas senão imersos e integrantes das culinárias que desenvolveram, de costas para o colonialismo que se apropriou deles, coisificando-os para redefini-los em outras bases culturais", explica.

A briga do sociólogo com os mitos do senso comum em relação à história da culinária brasileira é antiga. Dez anos atrás, Dória já atacava de frente a forma como a ideia de miscigenação é usada para discutir a formação da culinária nacional.

Sua abordagem criticava o enfoque que iguala as contribuições de índios, negros e brancos em um regime escravocrata em que negros não tinham autonomia e povos indígenas foram dizimados. "O mito da miscigenação esconde o processo violento que destruiu os índios e descaracterizou os negros", disse à Folha em 2014, quando lançava o primeiro livro da quadrilogia.

Além da discussão sobre mestiçagem, "Remates Culinários" reúne outros ensaios independentes sobre a pesquisa do sociólogo nos últimos anos em torno da história culinária do país. De forma geral, o texto é mais denso e aprofundado teoricamente do que outras obras, pois tem um perfil mais acadêmico, com linguagem científica.

No livro, ele apresenta uma discussão sobre os chamados "ingredientes nacionais", trata do consumo de feijão no país e de diferentes diásporas que ajudaram a formar culinárias tradicionais no país. Trata ainda de como as carnes se incorporaram à alimentação brasileira e traça uma breve história do "projeto gastronômico para o Brasil" nos anos 1940.

Feijoada servida no Consulado Mineiro já ganhou prêmio de melhor feijoada de São Paulo, eleita pelo DataFolha
Feijoada servida no Consulado Mineiro já ganhou prêmio de melhor feijoada de São Paulo, eleita pelo DataFolha - Divulgação

Em um dos momentos mais curiosos, Dória critica a abordagem que considera que ingredientes são uma faceta natural dos objetos culinários, viés que chama de "ingredientismo". Segundo ele, esse olhar ignora que os ingredientes estão imersos num sistema de transformações em que ocupam o papel de matérias-primas naturais aptas a propiciar vários usos alimentares. Além disso, não carregam em si nenhuma carga nacional e culinária.

Dória ainda volta a uma discussão sobre o próprio conceito de uma "culinária nacional" brasileira, ecoando ideias que têm se tornado populares e que argumentam que as tradições alimentares antecederam a formação das nações.

Para ele, é importante entender que a culinária brasileira se fez desde o início de uma perspectiva globalizada. "Logo no início da colonização, os portugueses levaram para a África espécies como a mandioca e o milho, que logo se tornaram alimentos bastante difundidos por lá, tornando-se as principais culturas em vários reinos, de tal sorte que enormes contingentes de escravizados já os conheciam ao desembarcarem no Brasil, constituindo assim o substrato comum da cozinha popular que nos toca", explica.

E processos semelhantes continuaram acontecendo e se repetem até os dias de hoje. "Não existe um Brasil isolado. Chefs que inovam estão em rede internacional, inventando o Brasil culinário integrado ao mundo", diz.

Amido de raiz de mandioca orgânico
Amido de raiz de mandioca orgânico - Luis Echeverri Urrea/Adobe Stock
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