Descrição de chapéu Mobilidade

Citada como bom exemplo, Fortaleza desafia trânsito e transporte lotado

Capital cearense faz parte do grupo de ponta e aposta em receita elogiada

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Ciclovia na orla da praia de Iracema, em Fortaleza Rubens Cavallari/Folhapress

Fortaleza

A capital cearense tem seguido à risca a receita para diminuir a dependência e o impacto dos carros no dia a dia da população. Tem corredor de ônibus moderno, bilhete único com integração, ciclovias perto da maioria dos moradores, diminuição de velocidade máxima em grandes vias e criação de infraestrutura para que o pedestre se sinta mais seguro. Não por acaso, a cidade de 2,7 milhões de habitantes é citada por aqueles que estudam e conhecem o tema como um bom exemplo.

No Índice Folha de Mobilidade Urbana, com todas as ressalvas decorrentes da falta de dados no país, Fortaleza desponta em um grupo de sete capitais brasileiras com alguma perspectiva de alcançar a mobilidade sustentável em um prazo razoável. São aquelas que estão mais próximas de tornar os deslocamentos de seus habitantes mais eficientes, seguros, com menos impacto ambiental.

Mas por que, apesar do prognóstico positivo e boas ideias implantadas ao longo dos anos, quem visita a capital cearense ainda encontra cenas comuns às grandes cidades, especialmente nos horários de pico?

Congestionamentos, batalhões de motocicletas à espera da abertura dos semáforos, passageiros se acotovelando para entrar em ônibus lotados estão presentes na rotina de quem vive em Fortaleza e dão a dimensão do desafio que é tornar a mobilidade, de fato, sustentável, mesmo que parte das melhores práticas já esteja nas ruas.

"O problema é que essas cidades, como Fortaleza, São Paulo, Rio, são muito grandes. Então os problemas tendem a ser grandes também. E as soluções são caras. Difícil ter dinheiro para resolver", diz Mário Angelo Nunes de Azevedo Filho, professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará.

Para Azevedo Filho, além de persistir nos avanços, tudo passa também por trabalhar um desenvolvimento equilibrado, uma dica para municípios que hoje pensam em atrair moradores e crescer indistintamente. "Você não deve ter super metrópoles, megalópoles. Com um conjunto maior de cidades médias e pequenas, você vai ter problemas menores. Melhora a qualidade de vida, depende menos do transporte motorizado, da tecnologia dos sistemas mais caros."

Quando há trânsito, ele anda e para. A rodovia BR-116, que atravessa o país, tem cerca de 10 km de trecho urbano na capital. Vira uma grande avenida congestionada nos picos da manhã e da tarde. É carro demais, mesmo a cidade tendo 65% dos deslocamentos feitos em modo ativo (caminhada ou bicicleta) ou pelo transporte público.

Não é exagero ou trocadilho dizer que parte do tráfego de Fortaleza "corre e morre" na BR-116, onde pedestres também se aventuram a atravessar de um lado a outro, em pontos distantes das escassas passarelas. É um grande funil da mobilidade, ainda sob responsabilidade da União e sobre o qual há tratativas e planos para que a prefeitura assuma o controle e dê um padrão mais amigável, como fez em outras vias.

No transporte coletivo, avenidas como Bezerra de Menezes e Aguanambi receberam BRTs (corredores expressos de ônibus, com possibilidade de ultrapassagem entre coletivos e estações de embarque), acolhendo da bicicleta ao pedestre, deixando duas faixas em cada sentido para automóveis, limitadas a 50 km/h. A prefeitura fez isso não sem enfrentar resistência de parte dos comerciantes, que queriam vagas de estacionamento na rua, em frente às lojas.

Ainda assim, há lugares onde o cidadão passa apertado na capital cearense. Em terminais como Messejana, Siqueira e, principalmente Parangaba, passageiros se espremem para entrar nos ônibus lotados no horário de pico —neste último, filas se formam até para acessar as próprias plataformas, tamanho o fluxo. "Em vez de aumentar a frota de ônibus, eles reduziram", afirmou o gerente comercial Ezequiel Martins, 43, enquanto aguardava para voltar para casa na última semana.

A prefeitura nega que tenha havido redução no pico, embora admita que, diante da demanda 40% menor que no pré-pandemia, foi cortada parte dos coletivos nos "vales" (fora dos horários de maior movimento).

Fortaleza também conta com VLT e rede metroviária, embora relativamente pequena, o que demonstra a possibilidade de, no futuro, ampliar o transporte de grande capacidade, diminuindo o fluxo nas ruas.

Nas cidades grandes, problemas se espraiam. Em Fortaleza, 47% dos mortos no trânsito são motociclistas, apesar da redução de 13% no número de óbitos entre esse tipo de condutor nos últimos dois anos. Mesmo sendo um vetor de violência, as motocicletas ganham mais adeptos a cada dia, como ocorre em outros municípios.

No entorno do terminal Messejana, a reportagem presenciou uma cena curiosa e, ao mesmo tempo, assustadora para quem tenta compreender o mundo da mobilidade sustentável. O cuidador de idosos Cristiano Pereira Diniz, 42, foi atropelado há dois anos e meio. Com uma gaiola metálica presa ao braço, preparava-se para pegar um mototáxi, que é regulamentado em Fortaleza há cerca de 30 anos. "Preciso chegar rápido na perícia", disse, seduzido pela possibilidade de percorrer 15 km em 20 minutos.

O cuidador de idosos Cristiano Pereira Diniz, 42, foi atropelado há dois anos e meio; ele se prepara utilizar seriço de mototáxi, que é regulamentado em Fortaleza - Rubens Cavallari/Folhapress

Um dos mototaxistas do ponto em que Diniz embarcou é Edizio Américo, 59, um dos pioneiros e, por que não, sobrevivente da pilotagem. Ele conta qual é o perfil de quem leva na garupa. "É o cara que está atrasado e não quer pegar o trânsito. 'Quero ir avoado'. Eles gostam", afirma. "Risco é risco. O cara está pagando para ir."

Exemplo

Mas é sobre outro tipo de duas rodas que a capital cearense se destaca, para valer, como bom exemplo. O uso de bicicleta é tão disseminado que vai muito além daquilo que especialistas chamam de micromobilidade, quando a bike realiza apenas curtos deslocamentos. Cerca de 5% das viagens são feitas no pedal e, muitas delas, por longas distâncias, como se nota pelo pessoal que passa rápido no fim de tarde, com mochila nas costas, em ciclovias paralelas aos corredores do BRT.

O pedreiro Luiz David Vasconcelos de Souza, 20, gosta de deixar quilômetros e quilômetros para trás. Ao menos uma vez por semana, ele sai da praça do Ferreira, no centro, e pedala até o terminal Messejana em uma bike alugada. No sistema local, o bilhete único dá direito à primeira hora gratuita de pedalada. Ou seja, vai direto e não paga nada para percorrer os 13 km de distância. "É bom para distrair a mente e mais rápido que o ônibus", disse enquanto devolvia a bicicleta em uma estação na última quinta (26).

A paixão pelas bikes recebeu, nos últimos oito anos, um impulso considerável, com a estrutura cicloviária passando de 65 km para 410 km de extensão. Segundo o ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento), cerca de 51% da população vive a menos de 300 metros de uma ciclovia em Fortaleza —a segunda colocada, Vitória (ES), tem 33%, e São Paulo, 21%. A capital cearense é, de longe, a mais "ciclável" do país.

"Na série histórica [iniciada em 2018], Fortaleza já começou como a primeira, então com 35%", afirma Felipe Alves, ex-diretor da UCB (União dos Ciclistas do Brasil) e da Ciclovida (Associação dos Ciclistas Urbanos de Fortaleza). "O ideal seria algo muito mais próximo dos 100% do que dos 50%, mas a gente vê que a diferença para as outras é grande." Na capital, o dinheiro arrecadado com zona azul financia projetos cicloviários.

Embora sejam bem distribuídas, a reportagem encontrou na periferia da capital cearense ciclovias que precisam de requalificação.

No bairro Jangurussu, uma estrutura de mais de 20 anos está praticamente abandonada em meio a mato e entulho na anacrônica avenida Presidente Costa e Silva, onde barulho de motor e sinalização precária para pedestres transportam quem por lá passa para uma Fortaleza do passado, diferente das avenidas modernas e mais receptivas que têm aos poucos ganhado vida.

A Costa e Silva é tão insegura que ciclistas preferem pedalar nas bordas da via, onde veículos passam em alta velocidade. "Não presta. Toda esburacada, cheia de mato e lixo. Precisa deixar bonitinha", diz o carpinteiro Reginaldo Sampaio Ferreira Santos, 49, que usa a bicicleta para trabalhar.

É para tirar de cena vias como essa, requalificando-as, que Antonio Ferreira Silva trabalha desde 1984 no serviço público municipal. Engenheiro civil pós-graduado em mobilidade, o funcionário de carreira que hoje comanda a AMC (Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania) tenta pôr em prática os planos que defende há décadas. "Fico muito feliz, porque sou apaixonado por essa área desde os meus 18 anos", diz.

O superintendente da AMC diz ter ganhado fôlego e apoio nos últimos anos para implementar projetos de um trânsito um pouco mais tranquilo. "A gente viu que foi se tornando realidade."

Ferreira tem fala cadenciada, professoral, sem apertar o passo. Como se sujeito e ideia se fundissem. É assim que discorre sobre as 50 vias cuja velocidade máxima foi reduzida de 60 km/h para 50 km/h. "Quando passa de 60 km/h para 50 km/h, o pedestre tem dez vezes mais chance de sobreviver [em caso de atropelamento]. E o atraso do tempo de viagem é insignificante", explica.

Quando passa de 60 km/h para 50 km/h, o pedestre tem dez vezes mais chance de sobreviver [em caso de atropelamento]. E o atraso do tempo de viagem é insignificante

Antonio Ferreira Silva

superintendente da AMC (Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania)

Ainda conta sobre cursos para mototaxistas, do pacote de investimentos para consertar os rombos no pavimento causados pela quadra chuvosa (março a maio no Ceará), entre outros. Já a lotação do transporte público e os congestionamentos no horário de pico são vistos como problemas que precisam também de um acordo entre toda a sociedade, escalonando horários de entrada e saída do trabalho, distribuindo melhor os fluxos ao longo do dia.

Em Fortaleza, das 17 áreas onde foi implantado o conceito de trânsito calmo, com redução de velocidade da via e configuração que dá protagonismo ao pedestre, apenas 3 ficam em região turística, o que demonstra a intenção de tornar a mobilidade segura um direito para além dos bairros ricos da cidade, como deveria acontecer com saúde e educação, por exemplo.

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