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Brasília ainda desafia moradores a viverem sem carro 62 anos após inauguração

Capital investe em viadutos e reúne obstáculos para quem depende do transporte público ou quer usar bicicleta

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Trânsito na EPTG, uma das principais avenidas que liga a região central de Brasília às regiões administrativas de Águas Claras, Taguatinga e Ceilândia Pedro Ladeira/Folhapress

Brasília

Brasília ainda amarga as consequências de ter sido pensada para os carros. As longas distâncias da cidade inaugurada em 1960 dificultam o deslocamento a pé, a falta de infraestrutura desencoraja os ciclistas, os ônibus são escassos, e o metrô não chega nem a um sexto das regiões.

Especialistas apontam que os problemas para a mobilidade persistem por meio de políticas públicas que continuam privilegiando os carros.

"O planejamento foi voltado para o automóvel, e essa ideia rodoviarista acabou trazendo certa limitação para o cotidiano do morador. Ele se sente obrigado a ter um transporte individual porque existe uma deficiência muito grande no transporte coletivo", diz Zuleide Oliveira Feitosa, professora do programa de pós-graduação em transportes da UnB (Universidade de Brasília).

Dados oficiais reforçam essa impressão: 69% das residências do Distrito Federal têm carro, segundo levantamento do ano passado, enquanto 9% têm moto e 34%, bicicleta. E o automóvel é citado como o principal meio de transporte para ir ao trabalho.

Para o conselheiro e ex-coordenador-geral da ONG Rodas da Paz Raphael Barros, os problemas de mobilidade não são fruto só das decisões tomadas à época da construção. "Brasília foi planejada para os carros e está sendo gerida para os carros."

"A política do GDF (Governo do Distrito Federal) tem sido: vamos fazer obras enormes, um monte de viadutos, para que a gente possa ter fluidez no transporte público sem influir na fluidez do carro", acrescenta ele.

No Índice Folha de Mobilidade Urbana, Brasília aparece no grupo de capitais com alguma perspectiva de atingir a mobilidade sustentável num prazo razoável.

O governador Ibaneis Rocha (MDB), que assumiu o cargo em 2019 e disputará a reeleição, deu início à construção de túneis e viadutos tanto em regiões mais centrais (como a Asa Sul ou o Sudoeste) quanto em mais periféricas (como Taguatinga e o Recanto das Emas). Ele também inaugurou um complexo viário, iniciado em 2014, com 23 viadutos e quatro pontes.

Diante das críticas de quem defende a chamada mobilidade ativa —que inclui, por exemplo, o deslocamento a pé, de bicicleta, skate ou patinete—, o governo afirma que 29 km de ciclovia estão sendo construídos em diferentes regiões e outros 105 km estão em fase de licitação. Hoje, segundo a Secretaria de Mobilidade, a malha cicloviária é de 637 km.

No ano passado, o GDF fechou uma parceria com a iniciativa privada para o aluguel de bicicletas compartilhadas, mas as 53 estações estão restritas ao Plano Piloto, uma das regiões mais ricas. A ampliação do serviço, diz a secretaria, deve ficar para 2023.

A ONG Rodas da Paz reconhece que o número de ciclovias aumentou, porém reclama da falta de integração com os outros modais e da alta velocidade das vias. "A prioridade do governo Ibaneis foi o carro", afirma Barros.

Atravessar o chamado Eixão (rodovia que corta Brasília ao meio) resume bem as dificuldades que os pedestres enfrentam no dia a dia. São cerca de 16 km, três faixas em cada sentido —separadas por uma faixa central—, e velocidade máxima de 80 km/h. Nenhum semáforo, nenhuma faixa de pedestres, nenhuma passarela.

Para não interromper nunca o fluxo de veículos, os pedestres ficaram literalmente por baixo. São 16 passagens subterrâneas ao longo do Eixão, mas a falta de segurança nessas ligações leva muitos a cruzar a rodovia em meio aos carros em alta velocidade.

A atendente Lehane Araújo de Souza, 27, é uma das pessoas que se arriscam na travessia para chegar ao trabalho, na Asa Norte. "Às vezes, eu passo por cima porque fico com medo de passar por baixo", diz ela, cujo receio é ser assaltada.

Passagem para pedestres atravassarem sob o Eixão, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Em maio, o GDF anunciou que vai instalar lâmpadas de LED, pintar e reparar a rede de drenagem de água das chuvas de todas as passagens subterrâneas.

Para a arquiteta e urbanista Romina Capparelli, integrante do Movimento Urbanistas por Brasília, as melhorias prometidas são insuficientes para encorajar os pedestres. A seu ver, ao longo dos anos, os governantes têm usado o tombamento do Plano Piloto como justificativa para não resolver o problema.

"Se o GDF quisesse, poderia criar uma passagem com comércio e serviços, a exemplo do que é feito nas passagens do metrô. O movimento ajudaria a resolver a questão da insegurança, e a limpeza poderia ficar ao encargo dos comerciantes e prestadores de serviço, dentro da própria concessão", avalia.

Apesar das dificuldades impostas a quem anda a pé, Brasília ainda se orgulha de respeitar a faixa de pedestres. Quem chega à capital federal muitas vezes até estranha que, para atravessar a rua na faixa e fazer os carros pararem, basta esticar o braço —ou nem isso. O respeito é fruto de uma campanha bem-sucedida feita pelo Detran 25 anos atrás.

Brasília dispõe de metrô e BRT (sigla em inglês para "Bus Rapid Transit", os corredores expressos de ônibus com estações de embarque), porém em poucas regiões.

O metrô, que o governo promete expandir, hoje conta com duas linhas e opera em 6 das 33 regiões administrativas. O BRT liga só três delas à região central.

Quem depende do transporte público dificilmente consegue fugir dos ônibus lotados e da baldeação no terminal central, chamado de rodoviária. O local ficou ainda mais caótico após o governo desativar uma segunda rodoviária —que ficava ao lado—, de onde partiam e chegavam as linhas que levam às cidades goianas do entorno do DF.

O estudante Daniel Duarte Rodrigues, 19, faz estágio de manhã e faculdade à noite. Com poucas opções de ônibus para voltar para casa à tarde, ele passa o dia todo na rua.

"Eu chego à UnB umas 16h30 e fico esperando até começar a aula, às 19h. O tempo de deslocamento [do estágio para casa] é muito grande", diz ele. "Na volta, à noite, tem professor que termina a aula mais cedo porque sabe da dificuldade para pegar ônibus."

Passageiros em fim de tarde na rodoviária do plano piloto em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Outro desafio do passageiro é descobrir o básico: a que horas o ônibus passa. Daria para começar a solucionar esse problema, segundo o porta-voz do Observatório Social de Brasília, Rodrigo Chia, se a informação do GPS dos veículos fosse informada aos usuários.

Porém, não se sabe nem se todos os veículos têm o equipamento, como prevê o contrato com o poder público. "A gente não sabe se toda a frota [está em operação], se estão sendo feitas todas as viagens contratadas, se estão cumprindo o horário e assim por diante", afirma Chia.

Um socorro de quase R$ 1 bilhão às empresas de ônibus chegou a ser aprovado durante a pandemia, com o argumento de que era preciso compensar o prejuízo decorrente da queda no número de passageiros. Nem governo nem empresários fornecem os dados para que os números de gastos e usuários sejam fiscalizados.

A Secretaria de Mobilidade afirma que ampliou as faixas exclusivas de ônibus, implementou a integração tarifária (em que o usuário pode fazer até três embarques de ônibus e metrô em até três horas, pagando a passagem uma única vez) e está reformando e construindo terminais de regiões administrativas.

Mesmo de carro e morando a cerca de 10 km do trabalho, no SIA (Setor de Indústria e Abastecimento), o engenheiro eletricista João Vitor Taveira Barbosa, 28, perde cerca de 40 minutos no trânsito de manhã e no fim do dia. "Eu moro próximo de uma das saídas de Águas Claras. Acabo evitando bastante trânsito, mas, mesmo assim, ainda pego o congestionamento na EPTG."

Em Águas Claras, região administrativa do Distrito Federal, não é exagero dizer que às vezes o congestionamento começa na garagem dos condomínios.

Do total de domicílios, 98% são apartamentos, o que faz da região a mais verticalizada do DF. O engarrafamento, no entanto, também aparece nas principais vias nos horários de pico (a Estrutural, a EPNB, a Epia, as BRs 020, 060 e 070, além da DF-001).

Segundo Zuleide, o problema também é fruto de outra característica da cidade. "O fato de Brasília ter sido planejada com os governos federal e distrital nesse eixo central faz com que exista esse movimento pendular: as pessoas vão para o centro do Plano Piloto e voltam para as suas moradias, em outras regiões administrativas", explica. "Há uma necessidade muito urgente de descentralizar a administração pública."

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