Descrição de chapéu Obituário Ibrahim Abdel Latif (1936 - 2023)

Mortes: O palestino imprudente que calculava

Empreendedor e aventureiro destemido, Ibrahim imigrou para o Brasil pela possibilidade de trabalhar como mascate no interior de São Paulo

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Marcos Lisboa
São Paulo

Ibrahim Abdel Latif nasceu em Battir, na antiga Palestina, então sob mandato inglês. As poucas fotos dos seus pais, muçulmanos, trazem o vestuário dos beduínos. Não sabiam a data do seu próprio nascimento. Não sabiam de leitura.

Como era o menos hábil com as mãos em uma família de pedreiros numa vila empobrecida, Ibrahim, ainda menino, foi despachado para estudar em Belém, sendo acolhido por cristãos, amigos da sua família.

Seu pai o visitava quando podia e o presenteava com o que a vida de então permitia: figos secos que trazia nos bolsos.

Ibrahim Abdel Latif (1936-2023)
Ibrahim Abdel Latif (1936-2023) - Arquivo pessoal

Perto dos 20 anos, Ibrahim, que falava árabe e inglês, imigrou para o Brasil. A promessa era tênue. Havia um primo que viera para cá e a possibilidade de trabalhar como mascate no interior de São Paulo.

Ibrahim se casou com a filha de imigrantes portugueses que tinham uma venda no interior de São Paulo e que mal sabiam das letras. Ela se formara em biologia pela USP.

Arminda e Ibrahim tiveram quatro filhos. Um, médico pela USP; outra, nutricionista pela PUC; a terceira estudou ciência de computação no ITA, depois direito em outra escola; e a quarta tornou-se doutora em economia pela USP.

Essa história surpreende apenas a quem pouco conhece as histórias de imigrantes.

A escolha de deixar seu país para trabalhar em uma terra estrangeira, muitas vezes sem saber a língua da nova moradia, quase sem recursos e com alguns contatos distantes, revela uma ousadia surpreendente para a maioria de nós.

Muitos imigrantes estão dispostos a enfrentar décadas de parcimônia e disciplina para que seus filhos possam ter acesso a oportunidades inviáveis em seus países de origem.

Arminda partiu pouco antes da pandemia de Covid. Ibrahim nos deixou no última sexta-feira (5). Ela, católica, com os rituais que conhecemos. Ele, muçulmano, enrolado em um tecido branco, sem caixão, deitado na terra, como manda sua tradição. Estão lado a lado.

Os amigos lembraram das suas conquistas e generosidade, mas também dos desacertos. Juntos, contando vinténs, adquiriram postos de gasolina e imóveis. Acolheram outros imigrantes.

Arminda era professora. Ela tinha a retidão e o zelo das personagens de Miguel Torga. Cuidava com sobriedade e regramento da casa, dos negócios e dos alunos. Mas invariavelmente, pegava o carro antigo e levava os filhos para conhecer outras cidades, no limite do possível.

Ibrahim era empreendedor e aventureiro destemido. Gentil no trato pessoal, por vezes, contudo, era demasiadamente severo. Ocasionalmente, sua imprudência resultou em perdas difíceis e irreparáveis. Um acidente vascular imobilizou-o no último ano.

A despedida de Ibrahim ocorreu em uma tarde ensolarada de sábado. Naquele descampado, em Campinas (93 km de SP), as pessoas são enterradas em baixo de um vasto gramado, no alto de uma colina, onde se avistam alguns quilômetros de vales e outros montes. Não há os mausoléus, nem os túmulos empedrados típicos dos nossos antigos cemitérios.

Havia apenas saudade e gratidão.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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Marcos Lisboa é casado com Zeina Abdel Latif, a quarta filha de Arminda e Ibrahim. Este obituário utiliza trechos de uma coluna que escrevi há seis anos sobre imigração. Gentilmente, a redação convidou-me a detalhar essa história.

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