Descrição de chapéu Folha Mulher Mátria Brasil

Abadessa Tereza Josefa do Paraíso disputou poder e, segundo boatos, causou infarto no arcebispo da Bahia

Denunciada por 'comportamento abominável', religiosa praticou usura e mudou regras de convento em Salvador

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Patrícia Valim

Professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é idealizadora e uma das coordenadoras do projeto Mátria Brasil

Salvador

Em 1797, o arcebispo da Bahia, dom Antônio de Corrêa, enviou uma extensa carta às autoridades portuguesas para denunciar o comportamento abominável da abadessa Tereza Josefa do Paraíso e de um grupo de religiosas enclausuradas, chamadas "clarissas de véu preto". Elas faziam parte do Convento de Santa Clara do Desterro, fundado em 1677 e em funcionamento até hoje no bairro Nazaré, em Salvador.

Ilustração de Veridiana Scarpelli mostra uma mulher sentada em uma cadeira. Ela é branca, usa um vestes e véu pretos, com uma camisa e véus brancos por baixo. Ela A cadeira vermelha está virada para a esquerda e a mulher, com os braços apoiados nos braços largos da cadeira. As mãos são longas com dedos finos, que usam anéis dourados. Um deles tem uma pedra vermelha. No pescoço, um colar dourado com um grande medalhão com um coração vermelho no centro. A espressão é de serenidade, com olhos bem expressivos e boca serrada.
Uma das “clarissas de véu preto” da Salvador do século 18, abadessa Josefa do Paraíso foi denunciada por seu "comportamento abominável" e ficou com a fama de ter infartado arcebispo da Bahia - Veridiana Scarpelli/Folhapress

O Desterro foi construído com o dinheiro dos negócios escravistas das famílias mais ricas da capitania da Bahia para que apenas suas filhas pudessem se dedicar à vida religiosa. O ingresso no convento era muito disputado. A família da futura religiosa precisava provar que a filha era batizada e tinha "sangue puro", ou seja, não ser judeu, mouro ou mulato, e nem possuir familiar dedicado ao comércio.

Após um ano de noviciado, período para cumprir as exigências religiosas, a jovem noviça recebia o véu preto como símbolo de voto perpétuo a Deus após sua família pagar um dote ao convento, uma vultosa quantia que podia ultrapassar dois contos de réis —algo em torno de R$ 246 mil.

Desse grupo de religiosas, elegiam-se para um mandato de quatro anos a maior autoridade do Desterro, a abadessa. Autoridade política indiscutível sobre as demais religiosas e responsável pela ordem social e econômica do convento, a abadessa tinha a função de redirecionar em forma de crédito o montante arrecadado com os dotes: empréstimos com juros de 6% ao ano para a coroa portuguesa e os familiares das religiosas.

a imagem destaca a torre de uma velha igreja, com pintura e telhados antigos. ao fundo, está o céu azul, com algumas novas
Torre do Convento de Santa Clara do Desterro, fundado em 1677 e em funcionamento até hoje no bairro Nazaré, em Salvador - Reprodução/Instagram @convento_do_desterro

A carta do arcebispo da Bahia lembrava às autoridades portuguesas aquilo que elas faziam questão de esquecer: além de a usura ser pecado capital, a abadessa Tereza Josefa do Paraíso não podia concorrer novamente ao cargo, pois a reeleição era proibida, e ela estava comprometendo as finanças do Desterro pelo excesso de "usurárias negociações".

Tereza Josefa do Paraíso era irmã do secretário de Estado e Governo do Brasil, José Pires de Carvalho e Albuquerque, uma das mais ricas e poderosas famílias da colônia. O início de sua vida religiosa no Desterro foi marcado por controvérsias. Foi aceita depois que seus pais pagaram um dote com valor superior ao exigido e foi eleita abadessa após eles oferecerem 400 mil réis anuais (quase R$ 1,5 mil) para as festas de Sant'Ana.

As doações não encobriram o principal motivo da denúncia do arcebispo da Bahia: Tereza Josefa do Paraíso não cobrava as dívidas do irmão e de outros homens poderosos da capitania da Bahia, que tomavam empréstimos do convento para viabilizar o tráfico de africanos escravizados e a produção açucareira dos engenhos. Essas famílias demoravam décadas e às vezes até um século para pagar apenas os juros da dívida.

Com apoio do governador da capitania da Bahia, Tereza Josefa do Paraíso encontrou uma solução para recuperar as finanças do Desterro: pediu autorização às autoridades portuguesas para o ingresso de mais noviças de famílias ricas para obter novos dotes, mesmo que para isso tivesse de flexibilizar a exigência de "pureza de sangue".

Dom Antônio de Corrêa ficou furioso e enviou outra carta com uma denúncia mais virulenta e exigindo uma reforma nos costumes das religiosas do Desterro. Para ele, a abadessa Tereza Josefa do Paraíso permitia que as religiosas comessem demais, fofocassem muito, não participassem de todas as missas e desrespeitassem o recato da clausura, pois recebiam a visita de homens da administração local e ainda eram proprietárias de escravizados no convento.

A coroa portuguesa convocou o governador da Bahia para resolver os conflitos. Ele pediu que o poderoso e rico irmão da abadessa parasse de interferir nas eleições do convento, autorizou a entrada de mais noviças de famílias ricas para que os novos dotes pudessem equilibrar as finanças do Desterro e adiou a reforma dos costumes das religiosas, contrariando o arcebispo da Bahia.

A abadessa Tereza Josefa do Paraíso conseguiu ser reeleita para mais um mandato que terminou em 1802. Mesmo com o boato de ter sido a responsável pelo infarto que matou o arcebispo da Bahia, ela conseguiu que três religiosas de sua família fossem eleitas abadessas e exercessem mandatos até 1811. Nesse período, 26 novas religiosas deram entrada no Desterro e seus dotes foram usados para dobrar o percentual de concessão de empréstimos. As dívidas antigas dos poderosos da capitania da Bahia? Não foram cobradas e nem pagas.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e terão publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

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