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O perigo do discurso simplista sobre a escravidão na África

Argumentos enviesados sobre o continente permanecem em novas roupagens

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A escravidão na África volta à cena pública brasileira de tempos em tempos. É recorrente o argumento de que a escravidão era natural no continente e que, durante o comércio transatlântico de escravos, líderes africanos lucravam com o negócio. Tais argumentos são agora renovados pela economista estadunidense Deirdre McCloskey, colunista desta Folha ("Quem lucrou com a escravidão?", 15/2). Cumpre, assim, que pesquisadores eticamente comprometidos com a divulgação do saber histórico restaurem a verdade dos fatos. É o que fazemos neste artigo.

Nas últimas décadas, historiadores e arqueólogos amealharam muitas evidências sobre como agentes euro-americanos participaram, diretamente, na escravização de milhões de africanos no seu continente de origem. Das cartas de Afonso 1º do reino do Congo até os relatos de viajantes no século 19, não foram poucos os testemunhos de como estrangeiros atiçavam o comércio escravista. A transformação da escravidão no continente para atender à demanda atlântica foi profunda.

"Negros no Porão", obra de Johann Moritz Rugendas do álbum "Viagem Pitoresca ao Brasil" (1835), que mostra o tráfico de escravos africanos - Reprodução

A alegação de que os "senhores de escravos africanos" lucravam com o negócio não procede. Ao contrário, tais senhores, no longo prazo, colecionavam dívidas. A colônia portuguesa de Angola, a mais impactada pelo tráfico de escravos, sofreu com a corrupção das instituições de justiça devido ao endividamento de líderes locais com comerciantes estrangeiros. Os resultados desse processo histórico foram nefastos e o empobrecimento, sobretudo em face à divergência econômica capitaneada pela Inglaterra no século 18, foi brutal.

O argumento de McCloskey retoma ainda uma linha de raciocínio que remonta aos senhores de escravos nas Américas e aos discursos leopoldianos que legitimaram a conquista da África na década de 1880. Parlamentares em defesa da continuidade do tráfico de escravos para o Brasil argumentavam que a escravidão era comum na África. O Rei Leopoldo, da Bélgica, usou a desculpa de que a Europa precisava interromper o comércio interno de escravizados e civilizar africanos para legitimar a conquista do continente, naturalizando a suposta relação entre África, escravidão e barbárie, argumentos que ainda hoje informam os discursos enviesados sobre o continente —embora muitas vezes com novas roupagens.

Sabemos que a escravidão tem longa história no continente e que diferenças de classe, como nos lembram W. Rodney e K. Nkrumah, são antigas. Como no resto do mundo, a escravidão surgiu em contextos variados e com propósitos distintos a partir de 1.000 a.C. Líderes valiam-se de escravizados para consolidar suas bases, incrementar suas produções agrícolas ou demonstrar seu poder. Mas era uma instituição marginal, que foi alçada ao centro da dinâmica histórica pelos interesses europeus a partir do século 16.

Do jeito como foi escrito, o artigo de McCloskey alimenta os rasos argumentos do conservadorismo extremista que ameaça a democracia. Fere também as discussões sobre reparação histórica ao sugerir que a responsabilidade sobre a tragédia humana era internacionalmente compartilhada. É preciso falar da escravidão, de sua abrangência e perversidade e dos múltiplos atores sociais que durante séculos a sustentaram, mas é preciso abandonar a maneira simplista com que intelectuais e políticos se engajam com o passado africano. A história complexa, rica e diversa do continente não merece uma leitura fortemente marcada pelas tradições racistas do pensamento europeu.

Marcos Leitão de Almeida
Northwestern University

Gilberto da Silva Francisco
Unifesp

Patrícia Marinho
Negrarqueo

Camilla Agostini
Uerj

Bruno Pastre
Ufam

Vanicléia Santos
University of Pennsylvania

* Os autores são integrantes do Grupo de Trabalho de Arqueologia e Cultura Material da África e suas diásporas da Sociedade Brasileira de Arqueologia

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