Descrição de chapéu Escravidão hoje

Mulheres afetadas pelo trabalho escravo lutam por indenização; leia depoimentos

Vítimas impactadas pela escravidão contemporânea contam suas histórias

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São Paulo e São Bernardo do Campo (SP)

Duas trabalhadoras escravizadas e uma viúva de trabalhador rural explorado em fazenda narram as consequências do trabalho escravo e a busca por indenização.

Vera*, 75, passou mais de 50 anos trabalhando como empregada doméstica para a mesma família, sem receber salário. A mulher foi resgatada em 2021. Ela conta que sofria violências físicas por parte da ex-patroa.

Imagem mostra as mãos pardas, a boca e parte do queixo de uma mulher resgatada de situação análoga à escravidão. Não é possível identificá-la. Ela veste uma camiseta de cor lilás e usa anéis prateados nos dedos das mãos.
Vera*, 75, resgatada em 2021 após cinco décadas de trabalho doméstico em situação análoga à escravidão, vive hoje em uma república de estudantes, no Rio - Eduardo Anizelli - 16.jun.2023/Folhapress

Joana*, 49, ficou três décadas em condição análoga à de escravo —foi retirada dessa situação há dois anos. Ela era cuidadora de quatro idosas. Também não recebia nenhum centavo pelos serviços prestados. Ambas as vítimas aguardam pelo dinheiro das indenizações e têm um sonho em comum: comprar uma casa.

Já Leidivânia Sousa Fonseca, 34, não foi submetida ao trabalho escravo, mas também foi impactada. Ela é viúva de Alison Moreira dos Santos, ex-cortador de cana morto em abril de 2022, após ser submetido a trabalho degradante em uma fazenda em Campo Florido, a 546 km de Belo Horizonte (MG).

A Folha entrevistou as três mulheres afetadas pelo trabalho análogo à escravidão. Leia a seguir os seus depoimentos.

FIQUEI 50 ANOS NA CASA, DORMIA EM COLCHONETE E APANHAVA DA PATROA

Vera*, 75, foi empregada doméstica da mesma família por mais de cinco décadas. Não recebia salários

Saí de Belo Horizonte (MG) com 19 anos. Parei de estudar na quarta série do primário. Fui morar com a prima do meu ex-patrão, no Rio de Janeiro, para trabalhar como empregada doméstica. Fiquei mais de 50 anos com a mesma família.

A patroa tirou os meus documentos: RG, CPF e carteira de trabalho. A carteira nunca ganhou uma assinatura.

Fazia tudo na casa e levava as crianças para a escola. Vi os filhos crescerem, se casarem e até nascer um neto da patroa. Não tinha noção de que era situação de escravidão.

Morava num condomínio fechado e passava o tempo todo fazendo o serviço da casa. Não podia parar para sentar, a patroa reclamava. Na hora de dormir, eu colocava um colchonete no chão do escritório. Não reclamava, porque eu não tinha outro lugar para morar.

No começo, a dona da casa era boa pra mim, comprava minhas roupas. Nunca tirei férias na vida e também não tinha salário. Ela me falava que o meu salário ajudava nas compras da casa.

Quando a patroa bebia, ficava violenta, aí me batia sem motivo. Uma vez, a vizinha viu a confusão e chamou a polícia. Eu já não aguentava mais o sofrimento que estava passando ali. Às vezes chorava escondida nos cantos. A polícia foi lá, mas não consegui falar nada. Se eu falasse, não ia mais ter lugar para morar.

Um dia falei tudo o que acontecia com essa vizinha. Ela trabalhava na Defensoria Pública, é aposentada, mas não sei o nome dela. Só sei que morava no condomínio. Ela sempre me vigiava e via a patroa me xingando.

Depois foi um pessoal na casa investigar e fazer perguntas [auditores fiscais do Ministério Público do Trabalho]. Acho que foi essa vizinha que denunciou. Aí minha vida virou um inferno. Mas eu agradeço por ter saído de lá. Senti um alívio, lá era horrível.

Fui resgatada daquela casa em setembro de 2021. Agora moro em uma república para estudantes, pago com meu dinheiro do BPC [Benefício de Prestação Continuada, obtido após o resgate].

Tenho meu quarto e minhas coisas. Estou esperando receber o dinheiro do processo. Quando sair, quero comprar uma casa para morar sozinha.

CUIDEI DE QUATRO IDOSAS E SERVI MAIS DE 30 ANOS SEM RECEBER UM CENTAVO

Joana*, 49, foi submetida a trabalho escravo e resgatada em 2021. Aguarda sua indenização

Estudei até a quinta série em Santanópolis, onde nasci, na Bahia. Quando tinha 15 anos, minha prima me levou para Salvador, para trabalhar como empregada doméstica. Era a época do Itamar Franco (1992-1995), não lembro o ano.

Quando cheguei, a vaga não era de doméstica, e sim tomar conta de quatro irmãs. Tinham entre 50 e 60 anos, uma andava na cadeira de rodas. Eu tinha que levar para todo lado, dar banho, ajudar a trocar e dar remédio.

Fiquei lá 32 anos. Fazia tudo: lavar, cozinhar, varrer, cuidar delas, levar no médico. Não sabia que era trabalho escravo.

Todo esse tempo não saía, não ganhava um centavo. O trabalho era puxado, sem descanso. De noite, não conseguia dormir, uma idosa ficava gritando. Mas elas eram boazinhas pra mim.

A sobrinha delas é que era uma pessoa ruim, difícil de pagar. Ainda me xingava de ladrona. Falei que ia botar na Justiça, estava trabalhando sozinha, sem ter dinheiro para comprar minhas coisas.

Fazia tudo: lavar, cozinhar, varrer, cuidar delas, levar no médico. Todo esse tempo não saía, não ganhava um centavo. O trabalho era puxado, sem descanso

Joana*

cuidadora de idosas, trabalhou em condição análoga à escravidão por mais de três décadas, em Salvador

Pedi uma menina pra me ajudar. Ela achou ruim, reclamou. Mas arrumou uma moça que preparava o almoço. Um dia, essa menina disse que o serviço era cansativo e ia sair de lá. Ela me falou para eu ir no MTE [Ministério do Trabalho e Emprego], achava um absurdo não pagar meu salário.

Um dia, conversando com a vizinha, ela perguntou quanto me pagavam por mês. Falei que nunca recebi. Ela também falou para eu ir procurar meus direitos. Um dia, quando viu a sobrinha das idosas lá perguntou quanto ela me pagava. Na hora [a sobrinha] não teve resposta, mas depois pagou o salário daquele mês reclamando. Isso foi em 2018.

Só depois eu fui no Ministério do Trabalho, estava fechado por causa do coronavírus. Pediram para ligar. Conversei com a auditora Liane e expliquei a situação. Fui aconselhada. Falaram que iam me tirar daquela casa. Meu irmão ia me buscar.

Em abril de 2021, fui embora de onde morei a vida toda cuidando das idosas. Três morreram. A sobrinha botou uma no asilo, tem agora 101 anos.

Estou morando em Feira de Santana com meu irmão, a cunhada e a sogra dele, de 90 anos. Tomo conta dela. Foi um alívio, estou começando a viver. Assim que receber meu dinheiro quero comprar casa e fazer curso de cuidadora.

DEPOIS QUE MEU MARIDO MORREU, OS FISCAIS MANDARAM TODO MUNDO EMBORA

Leidivânia Sousa Fonseca, 34, é viúva de Alison Moreira dos Santos, morto em abril de 2022 após ser submetido a trabalhos degradantes

Ele foi trabalhar com cana em Minas. Foi para passar três meses. Só que ele passou um mês e pouco. Quando começou, a bota que ele usava apertou muito o pé e ficou com calo. Mesmo assim, ele estava trabalhando.

Começou a inflamar e ele me falava que estava doendo, inchado demais e que lá não tinha médico. Falei para ele vir embora, porque não tinha como me deslocar daqui para lá para cuidar dele. Até porque eu tinha minhas filhas e tinha que pagar passagem. Eu mandei ele vir embora. Ele veio.

A infecção afetou demais. Até a garganta infeccionou. Ele ainda passou oito dias aqui e morreu. Na certidão de óbito está que ele teve uma infecção generalizada.

A maioria dos homens daqui do Maranhão viaja para trabalhar atrás de melhoria para família. Um fica indicando o outro. Um vai, aí vai outro. E a empresa nem sequer tem uma estrutura melhor para as pessoas.

Lá, ele achou um colchão na rua e botava para dormir. Dormia com outros cinco homens.

O salário, parece que era pelo tanto de cana que a pessoa cortava. Tinha que cortar muito para poder ganhar, porque era R$ 0,50 o metro.

Eu sei que ele saía cinco horas do alojamento. Quando ele chegava eram oito horas da noite, aí que ele me ligava.

Leidivânia e as filhas Anna Beatriz, 11, e Ana Luíza, 5, em São Vicente Férrer, no Maranhão
Leidivânia e as filhas Anna Beatriz, 11, e Ana Luíza, 5, em São Vicente Férrer (MA) - Arquivo pessoal

Depois que o Alison morreu, os fiscais foram até lá e os amigos dele ainda estavam trabalhando. O Ministério Público mandou tudo embora.

Eu não procurei advogado. Foi o Ministério Público quem me procurou. Depois veio a Nathália e a Maria Carolina. É esse pessoal [da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG] que está me ajudando.

Graças a Deus eu já tenho a minha pensão [rural por morte]. Mas não dá para nada. O material do colégio das minhas filhas, a comida todo dia, tem gás, tem que pagar mototáxi para levar minha filha na escola.

Sou uma mãe muito preocupada. Tenho medo das minhas filhas passarem fome, de faltar coisas e eu não poder dar.

Já tem mais de oito meses da última mensagem sobre o processo trabalhista [que corre em segredo de Justiça]. Parece que a empresa trocou de advogado, e o novo advogado ia ter que estudar o caso todo novamente.

O pessoal da clínica não tem mais resposta para me dar. Mas diz que estão correndo atrás. E, realmente, eles me ajudam demais.

Eu preciso de uma resposta.

*Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto indicava que a entrevistada de nome fictício Joana fora resgatada em 2022 e que recebera a recomendação de procurar o Ministério Público do Trabalho (MPT). O seu resgate aconteceu em 2021, e a sugestão foi para que procurasse o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
 

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