Descrição de chapéu Folha Mulher

Ângela Maria Gomes tornou-se rainha do Rosário apesar de ter sido denunciada para a Inquisição

Africana era sacerdotisa do culto vodum e também participante de irmandade católica em MG no século 18

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Moacir de Castro Maia

Historiador e autor do livro “De Reino Traficante a Povo Traficado”

Mariana (MG)

Em noites de lua cheia, a africana Ângela Maria Gomes incorporava o vodum (nome das divindades e da religião) e dançava com outras mulheres em volta de uma gameleira em um povoado pertencente a Ouro Preto, por volta de 1759.

Enquanto buscava praticar os ritos religiosos de sua terra natal, ela era vigiada e perseguida por homens brancos, que escreveram várias cartas à Inquisição para denunciar a sacerdotisa vodum como a grande "mestra das feiticeiras" daquele arraial minerador.

Ilustração de Mariana Waechter mostra, sobre um fundo amarelo, uma mulher negra, muito bem vestida, com porte aristocrático. Ela está em pé, no centro do quadro, ligeiramente virada para a direita. Usa um vestido longo, amarelo com detalhes ornamentais em marrom. Da cintura sai uma espécie de véu vermelho com bolinhas azuis claro. Das mangas sai um babado azul claro, mesmo tom do recorte do decote. Os sapatos têm salto médio e também são em tom de azul. No pescoço, usa um colar com duas camadas de pérolas. Com a mão direita segura uma bengala dourada e, com a esquerda, abana o rosto com um leque azul. Na cabeça, uma coroa dourada.
Ângela Maria Gomes era sacerdotisa do culto vodum e, no século 18, foi coroada rainha do Rosário do povoado de Itabira do Campo, atual Itabirito (MG) - Mariana Waechter/Folhapress

Já fazia algumas décadas que Ângela havia sido capturada na região dos reinos de Uidá e Grande Popo (atual República do Benim), na África Ocidental, e vendida como escrava para a nova capitania de Minas Gerais, onde passou da escravidão para a liberdade.

Além de conquistar a alforria, ela se tornou senhora de sua casa, adquiriu trabalhadores escravos e vivia da produção de pães e quitandas, sendo reconhecida como uma mulher liberta.

A presença destacada e o relativo êxito econômico dessa mulher africana começaram a incomodar uma parcela de homens livres daquela sociedade escravista. Era um momento de insatisfação de parte da classe senhorial de Itabira do Campo (atual Itabirito - MG), que vivia um período de declínio da exploração do ouro naquele arraial.

Além disso, ser senhora de sua casa possibilitava maior liberdade para Ângela praticar seus cultos particulares, celebrar as divindades voduns e estreitar laços com pessoas de sua confiança. Nessas cerimônias secretas, ela se religava à família deixada na África, às histórias de seus ancestrais, às crenças religiosas de sua terra natal, o que contribuía para enfrentar as perdas, os infortúnios e os dilemas vivenciados do lado de cá do Atlântico.

A perseguição masculina contra Ângela e outras mulheres negras do povoado revela o quanto as práticas mágicas, o papel econômico independente e a liderança religiosa dessas mulheres libertas desagradavam parcela da elite do arraial.

As denúncias recebidas pelos agentes da Inquisição em Minas chegaram ao Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, com a acusação de que ela causava malefícios à população local. Contudo, outras fontes demonstram que algo havia sido omitido pelos denunciadores.

a ilustração mostra diversas mulheres negras em cortejo, usando vestidos decorados e diversos utensílios. a rainha do rosário está num dos cantos da imagem, protegida por um guarda sol rosa.
Cortejo da rainha negra na festa de Reis, em ilustração de Carlos Julião - Biblioteca Nacional

A africana não era apenas uma destacada praticante do culto vodum. Também era uma das mais proeminentes participantes de irmandade católica na localidade, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.

Essa era uma das únicas formas de organização coletiva de pessoas negras aceitas e permitidas pelo poder colonial, que buscava o controle social da população escrava e liberta e a assimilação delas ao catolicismo, a religião oficial do Império português.

Na Irmandade do Rosário dos Pretos de Itabira do Campo, Ângela foi coroada rainha do Rosário mais de uma vez. Sua influência e sua autoridade transparecem em diversas decisões, como a posse da sua escrava Ana como juíza da irmandade e a doação de uma vara de prata (signo de autoridade do cargo) para que ela pudesse sair em cortejo festivo e cumprir suas funções na mesa de direção com dignidade e certa opulência.

Para esta africana e outros conterrâneos, não era contraditório ser uma sacerdotisa do culto vodum, abraçar o catolicismo ou dançar para o vodum Loko (de origem no orixá Iroko dos iorubás), pois a religião vodum era dinâmica, aberta, e incluía novos elementos, mesmo se de outros territórios e religiões.

A crença era que quanto mais protetores a pessoa tivesse, mais protegida espiritualmente ela estaria, o que buscava equilibrar a relação entre o mundo visível e o mundo invisível do universo vodum, além de demonstrar temor e respeito por práticas de outros indivíduos e religiões.

É uma lição de tolerância religiosa vinda dessa cultura africana, que contribuiu na formação de vários ritos afro-americanos, incluindo o candomblé no Brasil.

As denúncias contra Ângela foram arquivadas em Lisboa enquanto ela continuava a sofrer a perseguição local, inclusive de alguns membros de sua própria confraria. Contudo, superou as adversidades, manteve-se senhora de sua casa e voltou a ser coroada rainha do Rosário no final de sua vida. Sendo também católica, deixou sua residência como patrimônio para sua irmandade.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e têm publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

Mãe Menininha do Gantois na década de 1970 - Acervo UH/Folhapress

Lançamento de livro

Será lançado nesta terça-feira (1º), em São Paulo, o livro "Mulheres que Interpretam o Brasil" (ed. Contracorrente), organizado pelos professores e pesquisadores Lincoln Secco, Marcos Silva e Olga Brites.

A obra reúne ensaios e artigos que apresentam a contribuição de 45 mulheres para a história do país, como as escritoras Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector. A historiadora Patrícia Valim assina um dos textos do livro, sobre Mãe Menininha do Gantois.

O lançamento ocorre na livraria da Vila (al. Lorena 1501, Jardim Paulista), a partir das 19h.

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