'Quarto de Despejo' revela Brasil das maiorias

Obra de Carolina Maria de Jesus foi a mais indicada entre os 200 livros para entender o país

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Montevidéu

Passadas seis décadas de sua primeira publicação, "Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada" permanece intacto como um dos retratos mais verticais e descarnados do que é ser preto, pobre e mulher no Brasil.

O livro de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) foi o mais indicado por intelectuais no projeto 200 anos, 200 livros. Eles foram convidados a apontar as principais obras para entender o Brasil.

Editado em 1960 e com mais de 1 milhão de exemplares vendidos, o livro tirou do anonimato uma prolífica autora, que expressou nessa estreia a aridez do subsolo da pirâmide social: a pobreza vista de frente, a sobrevivência a partir de restos recicláveis, a solidão de uma mulher negra em sua luta contra vulnerações a cada esquina e para criar com dignidade filhos aos quais não sabe se poderá garantir nem comida, quem dirá futuro.

"‘Quarto de Despejo’ mostra o tempo todo uma mulher negra pensando, elaborando, expressando suas opiniões e experiências no mundo. É uma obra fundamental, um livro que está sempre vivo porque tudo o que houve ali permanece latente na nossa experiência social", afirma à Folha Fernanda Miranda, doutora em letras pela USP e integrante do conselho editorial responsável pela publicação de obras de Carolina pela Companhia das Letras.

Carolina Maria de Jesus está ao centro da imagem, com um livro em mãos, no que parece ser uma biblioteca. Ela, uma mulher negra retinta, está rodeada por crianças que a observam. A foto está em preto e branco.
A escritora Carolina Maria de Jesus em foto de 1961, um ano depois de lançar "Quarto de Despejo" - Arquivo Público do Estado de São Paulo/Última Hora

Mais de meio século depois da primeira impressão, a partir da apresentação dos textos, por parte da escritora, ao jornalista Audálio Dantas —em uma parceria não isenta de conflitos, mas que levaria Carolina ao sucesso editorial no Brasil e no exterior—, o diário e esforços de reedição e edição de novos conteúdos vão revelando que o primogênito livro da mineira é também um portão para adentrar um rico universo que não dialoga só com a literatura.

Como uma espécie de "feminista negra avant la lettre", a autora "voltou à cena crítica, que atualmente a coloca como protagonista destacada também em outros debates, como meio ambiente, problemas migratórios, urbanização e sobretudo relações de classe e etnias", afirma o historiador José Carlos Sebe Bom Meihy, que trabalha no projeto de publicar "Quarto de Despejo" em versão integral e em três volumes, com análises e sem os cortes promovidos por Dantas na versão de 1960.

Trata-se "dos mais expressivos textos produzidos pela cultura popular e por isso imprescindível", diz Meihy. "Novas edições completas exigirão novas soluções analíticas e certamente grupos atualizados hão de se valer de novas revelações que correm por conta da leitura política do livro, muito além do enquadramento literário."

"É um livro perene, como as maiores obras dos grandes autores internacionais ou nacionais que conhecemos", complementa Tom Farias, autor de "Carolina, uma Biografia" (2018).

"Ela extrapola todos os parâmetros do que podemos pensar, pela falta de acesso à alta formação acadêmica e relacionamento aos meios culturais", pondera. "Mesmo assim, consegue produzir uma obra original, transformando dor em protesto, angústia em arte literária, e se tornando uma das mais poderosas vozes no campo da literatura brasileira com forte projeto internacional."

A recepção do relato da autora dentro e fora de casa —foi editado da Turquia ao Japão— encerra um "paradoxo", classifica Meihy, ao refletir sobre os diferentes caminhos que a obra trilhou e sobre a amplitude de leituras existentes sobre Carolina, uma realidade mundial que só agora vem ganhando espaço local.

No Brasil, na intermitência das diversas edições e na sucessão dos renascimentos do livro, o debate ficou muito por conta da leitura literária da obra, como se os diários fossem campo exclusivo da literatura. Tem demorado muito para que haja variação desse pressuposto", diz ele.

"Apenas recentemente temos acatado os diários como documentos abertos, fonte para diferentes estudos. No exterior, a rota de ‘Quarto de Despejo’ seguiu outra orientação, mais aberta e variada, sobretudo sem interrupções."

Retrato de mulher negra, que costura pedras preciosas sob uma folha de papel e tem como fundo um pano vermelho
Retrato de Carolina Maria de Jesus, feito pelo artista Antonio Obá, em exposição sobre a escritora no IMS de São Paulo - Maria Clara Villas - 22.set.2021/Divulgação IMS

Autora do prefácio de "Quarto de Despejo" quando a obra saiu pela primeira vez em Portugal, em 2020, Miranda recorda que a mineira sempre "foi lida pelo mundo" porque "o mundo carece de elaborações assim, pungentes e refinadas como as dela".

Também autora de "Silêncios PrEscritos: Estudos de Romances de Autoras Negras Brasileiras", Miranda destaca ainda o caráter "revolucionário" do legado de Carolina.

"Ela é paradigmática, um ponto de partida para uma outra experiência literária no Brasil. Carolina tem uma frase que gosto sempre de repetir: ‘Escreve quem quer’. Essa perspectiva é revolucionária quando pensamos no sistema das letras no Brasil, que sempre operou a partir de silenciamentos, de perspectivas que tornavam legítima apenas uma voz", analisa.

"Carolina Maria de Jesus abre essa estrada no sentido de dizer que a literatura é um bem comum, o direito a significar, não só à escrita."

Quarto de Despejo (1960)

  • Autoria Carolina Maria de Jesus
  • Editora Ática
  • Páginas 264
  • Categoria Não-ficção
  • Gênero Diário
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