Engana-se quem pensa que experiências trans/gêneras seriam coisa recente e a nossa própria história nos traz exemplos contrários. Um dos mais antigos encontra-se em carta de 1551 do jesuíta Pero Correia, em São Vicente. Ele relata que o "pecado contra natureza" (sodomia) era muito comum entre povos indígenas da região, existindo ali "muitas mulheres que assim nas armas como em todas as outras cousas seguem ofício de homens e têm outras mulheres com quem são casadas" ("Cartas Avulsas", 1931, p.97). O registro é precioso, mas olhem a continuação: "A maior injúria que lhes podem fazer é chamá-las mulheres".
Não sabemos se tais indivíduos se viam como homens ou outra categoria, mas é notável que estavam incorporados à sua sociedade. Não eram dissidentes, como pessoas trans hoje. No entanto, a despeito do que escreveu, o jesuíta irá valer-se exatamente da palavra "mulher" para designá-los. Por quê? Ao perceber que seus corpos teriam vagina, ele não consegue mais vê-los senão pelo filtro cisgênero.
A citação, porém, teria ainda um desfecho: "Em tal parte lho poderá dizer alguma pessoa que correrá risco de lhe tirarem as frechadas". Ou seja, quem insiste em errar o gênero deles, pode acabar alvo de flechas. Nos primórdios da colônia, transfobia podia resultar em morte, acreditam?
Curiosamente, o que acontece três anos depois? Numa emboscada, Pero morre "varado pelas frechas dos Índios", segundo o padre Anchieta. Na sua hipótese, um espanhol que vivia entre os carijós estaria por trás da traição, mas o próprio padre não tem certeza disso.
Na dúvida, prefiro crer que, cansados de alertá-lo, tais indivíduos resolveram apelar para o recurso final, fazendo de Pero Correia o primeiro mártir da cisgeneridade no Brasil. Vivesse ele hoje, possível que os chamasse pelo menos de "pessoas que menstruam". Ou talvez não, seguisse um defensor obstinado de sua causa.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.