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Rosane Borges

Réplica - Masculinidades negras: eles que são homens que se entendam?

Não há nada de coragem ou ousadia em argumentos que enviesam diagnósticos e acusações

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Rosane Borges

Jornalista e pesquisadora da ECA-USP

O artigo a seguir é uma réplica à entrevista dada pelo sociólogo Henrique Restier, publicada na Folha em 3 de dezembro.

Tornou-se moeda corrente, em circuitos restritos do ativismo negro masculino, a discussão segundo a qual mulheres negras têm conseguido primazia no debate público (e tal preponderância se acirraria com a gestão equivocada do Ministério da Igualdade Racial), soterrando/invisibilizando a experiência cotidiana, que carrega uma verdade insofismável sobre as iniquidades das quais os homens negros são as maiores vítimas.

Ainda segundo essa discussão, aquela primazia é contraproducente, quase uma aberração, uma espécie de anomalia, porque, como dito, são os homens negros a categoria que mais sofre no rol das sistemáticas violências com fundamento racial (é verdade este "bilete"). Para os defensores dessa ideia, os dados estão aí desfilando efusivamente à nossa frente e, por isso, torna-se imperativo político realocar em ordem de prioridade as formas de exclusão que impedem a participação do homem negro na sociedade. A entrevista recente do professor Henrique Restier nesta Folha vocaliza parte desses argumentos, resultando em triste retórica.

Olhe-se para onde se olhe, esse postulado não se sustenta por uma série de razões. Poderia aqui escalar um Himalaia de questões, mas pelo espaço reservado ao artigo, condenso alguns pontos que considero essenciais para um debate que se quer honesto, apresentando divergências.

Expo Internacional Dia da Consciência Negra
Imagens de personalidades negras expostas na edição passada da Expo Internacional Dia da Consciência Negra, no Memorial da América Latina, em São Paulo - 17.nov.23/Divulgação

Aprendemos há algum tempo que, tal como a sombra segue a luz, raça e gênero são dois eixos extremos de diferenciação negativa, com prevalência da primeira nas taxas de desigualdade e exclusão. Homens e mulheres negros são sistematicamente submetidos a processos de rebaixamento e exclusão, apeados dos lugares de cidadania, ainda que restritos.

O feminismo negro surge, assim, como uma categoria política que se insurge contra essas duas tecnologias de poder (racismo, sexismo/patriarcado) e, a partir desse território, reconstrói a identidade do que é ser mulher negra no Brasil e no mundo, que se desdobra em plataforma política sobre a qual se movimenta para transformar a sociedade racista e patriarcal.

Ao fincar os pilares de sua atuação neste território bifronte, o feminismo negro comporta um projeto radical de mudança que sempre incluiu os homens negros (evitando cair na mesma armadilha que vem caindo os emissores daqueles argumentos, não posso deixar de mencionar que nós sempre fomos solidárias com o genocídio da juventude negra masculina pelo racismo policial, mas a contrapartida não se verifica quando o feminicídio e a violência obstétrica, que também matam mulheres negras aos borbotões, são os temas em tela. É só lançar um olhar em sobrevoo nas manifestações públicas, seja nos espaços materiais ou digitais).

Sem precisar apelar para a proficiência na leitura de dados, o Atlas da Violência, divulgado na semana passada, é mais do que pedagógico: as violências sofridas pela população negra, homens e mulheres, são da ordem da astrofísica, de tão exorbitantes. Nas práticas violentas que nos atingem, não estamos a dever nada aos homens negros no que diz respeito às iniquidades, com o acréscimo —que não é suplementar nem acessório— do tópico de gênero.

Os argumentos que sustentam ser ideológica ou disfuncional a suposta primazia da mulher negra no debate público adotam um viés metonímico, ou seja, tomam a parte pelo todo (os ditos erros táticos do Ministério da Igualdade Racial, um ministério com poucos recursos, entre outros casos e exemplos), acionada para uma defesa que se quer global e atinge a categoria política mulher negra; "confundem" formas de exclusão com formas de organização política (o fato de o feminismo negro se instituir como uma voz coletiva não significa que estamos melhores na fita e na foto, mas, antes, que nos organizamos em torno de duas categorias de exclusão para reivindicar e propor políticas públicas).

Os pesquisadores Tulio Custódio e Fabio Mariano da Silva, em artigo recente também neste jornal, repercutem a entrevista de Henrique Restier e sentenciam: "quando a compreensão sobre a concepção de cidadania e de formação como sujeito político alcançar homens negros como grupo, teremos uma revolução tal qual foi proposta pelas mulheres negras —e ganharemos todos". Bingo!

Feminismo negro e fenômenos de vidência

Quando metamorfoseia a pergunta de Sojourner Truth, "E eu não sou uma mulher?" para "E eu não sou um homem?", Restier cai em mais uma fantástica contradição: para além da que foi apontada por Túlio e Fabio, afirmar que os homens negros são os que mais sofrem as iniquidades e, por isso, devem ser vistos como categoria analítica é, no mínimo, derrapar nas próprias palavras.

Ora, só é possível sustentar uma situação piorada dos homens negros em relação às mulheres negras se desconsiderarmos a categoria gênero, atravessando-a como se fosse cortina de fumaça. Mas, ora e veja, ao mesmo tempo, o sociólogo reivindica o tópico de gênero no masculino para defender as suas posições quanto à situação dos homens negros, que devem ser vistos como categoria analítica. O que se pode ler por trás dessa contradição?

Caso se dispusessem a ouvir o que dizem efetivamente (a escuta é uma decisão política), os autores desses argumentos reordenariam seus princípios discursivos tomando como referência o legado dos feminismos negros (e não jogando a criança junto com a água do banho), que sempre instou as masculinidades negras a enunciarem seu nome enquanto categoria política e a dimensionarem o seu papel na sociedade (serei econômica nas referências: bell hooks, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento…).

Definitivamente, não há nada de coragem ou ousadia em argumentos que enviesam diagnósticos e acusações. Continuo lembrando e entoando frase célebre de Barbara Smith, manifestada em décadas atrás: "todas as mulheres são brancas, todos os negros são homens. Mas algumas de nós temos coragem".

Sim, nós tivemos coragem para, das bordas, das margens e da base (sim, permanecemos nela, caros colegas) enunciar um sujeito político: "agora o lixo vai falar e numa boa", decretou Lélia Gonzalez, sem precisar degenerar para um jogo de acusações contra aqueles que partilham conosco iniquidades semelhantes, ainda que em territórios distintos, e que, aqui e ali, pela tecnologia de gênero, podem, inclusive, ser nossos opressores.

Ao perceber a crescente ruminação desses argumentos, alguns com inequívoca carga de ressentimento, a vontade imediata que me veio à mente foi gritar um sonoro "Tu que lute". Mas, como historicamente vimos lutando por nós e por eles, resolvi falar/escrever. Pronto, falei. E numa boa, ao modo de Lélia!

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