Descrição de chapéu

bell hooks deixa uma obra extensa, afetuosa e de um valor inestimável

Trabalhos da intelectual têm um amor que propicia o desdobramento das ideias antirracistas e antissexistas

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Alex Ratts

Antropólogo, professor da Universidade Federal de Goiás, coautor de 'Lélia Gonzalez' (São Paulo, Selo Negro, 2010) com Flavia Rios (UFF) e organizador de 'Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos' (São Paulo, Zahar, 2021)

Um vazio se alastrou nas redes sociais entre pessoas e grupos do campo de estudos e ativismos que interseccionam raça, gênero e classe com a notícia da morte da crítica cultural bell hooks aos 69 anos nesta quarta-feira. Alguns pontos explicam as miríades de postagens.

Nascida no sul dos Estados Unidos, em Hopkinsville, no estado de Kentucky, no longo período de segregação racial e espacial, sua formação em literatura inglesa se ampliou para os estudos que articulam raça, gênero e classe enfocando mulheres negras. Esse espaço primordial de vivência, da mesma forma que outros pontos de sua trajetória, eram bastante acionados nos ensaios e capítulos relativamente curtos —para o padrão acadêmico brasileiro.

A entrada de seus textos no Brasil, no final dos anos 1990, foi lenta e esparsa, mas firme, via publicações feministas e, posteriormente, no horizonte da educação crítica. O processo atual de pesquisa, tradução e publicação de parte significativa de sua obra se justapõe à circulação dos trabalhos de autoras negras dos Estados Unidos e do Brasil.

Dois conjuntos temáticos podem ser ressaltados na sua obra. A primeira é a interseccionalidade, antes do conceito ter sido formulado, que foi tecida na sua produção e também nas de Angela Davis, Audre Lorde, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento.

Com todas as diferenças e desigualdades no que concerne a nação, raça e gênero, surge dessas intelectuais ativistas uma categoria analítica e metodológica feminista negra que passa a ter leituras variadas. Além disso, bell hooks elabora a noção de sistemas interligados de dominação —racismo, sexismo, classismo, ou elitismo— aos quais podemos acrescentar a segregação espacial.

A outra sequência temática de bell hooks diz respeito à educação crítica, na qual ela demarca sua aproximação com o pensamento de Paulo Freire, apontando a lacuna das questões de gênero na obra do pedagogo.

Três livros concentram suas ideias nesse campo, agregando a dimensão racial, pouco presente em debates acerca da educação –"Ensinando a Transgredir: A Educação como Prática da Liberdade", "Ensinando Comunidade: Uma Pedagogia da Esperança" e "Ensinando Pensamento Crítico: Sabedoria Prática".

Há outras proposições de hooks que reverberam na sociedade brasileira. Uma delas é a crítica da indústria cultural —cinema, televisão, música— em que a trama interseccional se reconfigura —seja na abordagem dos estereótipos ou das performances de artistas pop.

A outra é o amor, delineado como afeto político (uma proteção comunitária), por sua vez, suprimido a alguns segmentos desde o longo processo colonial e escravista. Literalmente, o afeto se tornou comum em seus ensaios, na verdade, em livros inteiros. Nesse bojo, cabe inserir os livros destinados a um público infantil.

Não é demais lembrar a criatividade na escolha das matérias e também dos títulos dos livros, coisa rara entre nossos debates necessariamente sérios, porém, com pouca dose de linguagem coloquial ou poética, férteis ferramentas discursivas. Basta lembrar "Erguer a Voz: Pensar como Feminista, Pensar como Negra".

Numa breve nominata, elenco algumas personas, nascidas como ela após a Segunda Guerra Mundial e que se forjaram como intelectuais insurgentes, partiram de terrenos encapsulados —racializados e segregados— e palmilharam territórios culturais e filosóficos entre dois países com similitudes nos sistemas estruturais e diferenciações na diáspora africana –Patricia Hill Collins, Cornel West, Luiza Bairros, Sueli Carneiro. West e hooks alcançaram muita popularidade midiática, sem serem complacentes consigo e sem perder a criticidade e a leveza de sua escrita e expressão pública.

Justapondo ideias, recordo que Roman Jakobson, no livro "A Geração que Esbanjou seus Poetas", buscou aquilatar a perda de artistas que tiveram relação com a Revolução Russa, a exemplo do seu amigo Maiakovski.

A intelectual era muito esperada por aqui. É possível imaginar que suas falas encheriam salas. Continua a avidez por traduções, inclusive de sua poesia. Por esse quadro sintético, vemos que a perda é inestimável. No entanto, permanece uma obra extensa, feita com acuidade e amor que propicia lastro para a composição do pensamento antirracista e antissexista.

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