Forças Armadas travam entrega, e 34 mil cestas básicas não chegam aos yanomamis

Documentos relatam que governo Lula nunca cumpriu meta de distribuição de alimentos; OUTRO LADO: Defesa destaca entrega de 36,6 mil kits e realização de atendimentos médicos

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Brasília

Em nenhum dos meses de 2023 o governo Lula (PT) conseguiu cumprir a meta necessária de distribuição de cestas básicas aos indígenas yanomamis, missão cujo sucesso dependia diretamente do empenho das Forças Armadas, mas que sofreu com a falta de "constância mínima de esforço" dos militares.

Este é o diagnóstico descrito em dezenas de documentos internos obtidos pela Folha e que revelam os gargalos da operação na Terra Indígena Yanomami, que quase um ano após o decreto de emergência sanitária não conseguiu acabar com o problema da desnutrição e do garimpo ilegal.

Os papéis descrevem, desde a elaboração do plano logístico para atendimento aos indígenas até a derrocada da operação com a desmobilização das Forças Armadas, o que causou o encalhe de mais de 34 mil cestas básicas não entregues no final do ano.

Crianças de cerca de 1 ou 2 anos pegam comida em pratos, sentadas no chão e cercadas por redes de descanso; uma mulher indígena os acompanha
Crianças yanomamis se alimentam no alojamento utilizado para abrigar os doentes na unidade de saúde de Auaris - Lalo de Almeida - 10.jan.2024/ Folhapress

No início da operação, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) calculou que seriam necessárias 9.000 cestas por mês para garantir o suprimento alimentar aos povos. Cerca de 8.300 unidades precisariam ser entregues por meio aéreo, com apoio da FAB (Força Aérea Brasileira).

Relatórios indicam que o governo nem chegou perto deste patamar.

Procurada, a Defesa que disse que foram "766 toneladas de alimentos e materiais transportados, o que ultrapassou a marca de 36,6 mil cestas de alimentos distribuídas" no âmbito da operação, com cerca de 7,4 mil horas voo, "o que equivale a mais de 40 voltas na Terra".

"Foram realizados 3.029 atendimentos médicos e 205 evacuações aeromédicas", 165 suspeitos foram detidos e, "aproximadamente, 1.400 militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica" atuaram na ação.

A Folha questionou o Ministério dos Povos Indígenas, a Funai e a Secretaria de Relações Institucionais do governo, mas não houve resposta até a publicação.

Apenas em dois meses —março e agosto—, a operação conseguiu distribuir mais de 5.000 cestas, e só no primeiro, mais de 6.000. Houve uma derrocada drástica em dezembro, com pouco mais de 500 pacotes entregues, o pior número de 2023.

"Quando as Forças Armadas aplicaram seus maiores esforços na operação, o resultado esteve próximo da quantidade satisfatória", diz um relatório operacional.

Por outro lado, "o esforço aplicado pelas Forças Armadas no âmbito da distribuição via aérea teve grandes oscilações" e, apesar dos de outros imprevistos, "fato é que não houve constância mínima de esforço para garantir, mesmo que limitadas, entregas frequentes de cestas, principalmente nos territórios e aldeias mais vulneráveis à exposição da violência e do garimpo".

Um desses locais é Auaris, região que a Folha visitou no início deste mês e constatou que o garimpo recuperou força no território e a desnutrição passou a fazer parte do cotidiano dos indígenas. Um ano após o início da desintrusão o hospital improvisado para atendimento indígena segue superlotado.

A operação na Terra Indígena Yanomami começou em janeiro de 2023, quando o governo Lula decretou estado de emergência sanitária na região, em razão da desnutrição e da malária, resultado da presença do garimpo ilegal.

A desintrusão do território foi uma determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, ainda durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) —que, por sua vez, nunca a atendeu.

Como mostrou a Folha, relatórios da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) apontaram que o governo Bolsonaro deixou as instalações de saúde com remédios vencidos, seringas orais reutilizadas indevidamente e fezes espalhadas em unidades de atendimento, com desvio de comida e de medicamentos para tratamento de malária.

Em uma nova tentativa de cumprir as promessas feitas um ano atrás, no último dia 9, o governo Lula anunciou mais R$ 1,2 bilhão para a operação.

Em meio a relatos de insatisfação com a atuação dos militares, o governo federal trabalha em propostas para que a operação das cestas seja feita de forma autônoma por outros órgãos.

Relatos de pessoas envolvidas na operação ponderam que as Forças Armadas precisaram deslocar efetivo para outras emergências durante o ano, como as chuvas no Sul ou a seca no Norte do país. Condições meteorológicas adversas e pistas de pouso precárias também são citadas como empecilhos.

Os relatórios obtidos pela Folha mostram que, no decorrer o ano, a incapacidade de entrega das cestas básicas criou um passivo de 37,2 mil delas encalhadas em novembro de 2023.

Em dezembro, o acumulado caiu para 34 mil. A solução foi enviar grande parte disso para outras regiões do país, mas na virada do ano mais de 14 mil ainda esperavam no estado e precisavam ser entregues até março.

A Defesa afirmou que "as Forças Armadas vão realizar a entrega de cestas básicas até que seja firmado contrato entre o Governo Federal e a iniciativa privada".

Segundo os documentos, pelo menos desde 1º de fevereiro órgãos envolvidos na operação já apontavam a necessidade de mais aeronaves para atender a demanda.

"O atual fluxo de vazão abaixo do necessário acarretará no acúmulo de alimentos e posterior perda dos mesmos, em clara ofensa aos princípios da eficiência e da economicidade, além evidente afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana", diz ofício da Funai.

No meio daquele mês, ofício do Ministério da Defesa reitera que as Forças Armadas estão empenhadas na "a entrega de cestas básicas às comunidades indígenas".

Já em maio, no entanto, o próprio Chefe do Estado-Maior, o almirante de esquadra Renato Freire, admite que as instalações militares são limitadas e "podem não atender aos requisitos de normas sanitárias para estocagem" de alimentos.

Em outubro, documentos falam em um cenário inexequível para as atividades, com a diminuição e intermitência do esforço das Forças Armadas.

No início de dezembro, o Ministério da Defesa afirma que a alta demanda durante o ano de 2023 causou a diminuição na disponibilidade de helicópteros.

O documento acrescenta que o orçamento para o apoio logístico em Roraima se esgotou, "não havendo previsão de novo aporte orçamentário".

Dias depois, Joenia Wapichana, presidente da Funai, conclui que "a desmobilização gradual do Ministério da Defesa, com a retirada das estruturas de armazenagem e abastecimento de combustível para aeronaves, inviabilizou todas as atividades previstas para o final deste ano"..

O ofício solicita urgência no novo aporte financeiro e cita o temor de que a volta do garimpo amplie a área de risco das entregas.

"Mais da metade do quantitativo de cestas previsto para entrega de cestas em território Yanomami encontra-se em regiões vulneráveis à segurança de indígenas e servidores por estarem em área de conflito com o garimpo", diz o documento.

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