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A visão evangélica sobre aborto já foi menos severa; o que mudou?

Não dá para desacoplar o incômodo moral do oportunismo político

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Anna Virginia Balloussier
Anna Virginia Balloussier

Repórter especial, escreve sobre religião, política, eleições e direitos humanos.

São Paulo

Dois deputados da Assembleia Nacional Constituinte, ambos da primeiríssima bancada evangélica do Congresso, discutiam se o aborto em certos contextos pode ser um mal necessário. Caso da mulher que engravida do estuprador.

O pentecostal Sotero Cunha: "Está provado cientificamente que a mulher pode evitar o estupro". A adventista Eunice Michiles: "Mesmo com um revólver apontado para a cabeça?". Sotero: "Bem, pode perder a vida, mas evitar o estupro".

O bate-boca pitoresco aconteceu nos anos 1980. Mas lá vamos nós, quatro décadas depois, debater um projeto de lei que trata como homicidas as mulheres —muitas delas crianças— que não querem gestar o filho dos homens que a violentam.

Manifestantes levantam papéis com os dizeres "Não ao PL 1904/24" e "Lira inimigo do povo", este com uma ilustração do presidente da Câmara, Arthur Lira; ao fundo, aparece o Congresso Nacional
Mulheres protestam contra o PL 1904, projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que prevê endurecer regras para aborto legal em caso de estupro - Pedro Ladeira - 13.jun.2024/Folhapress

Bom seria se a polarização não levasse a melhor aqui, porque simples o debate sobre aborto nunca é. Não pretendo escorregar na casca de banana que seria abordar num texto tão curto todas as questões de ordem religiosa, científica e socioeconômica do tema.

O que busco aqui é entender por que os mesmos grupos conservadores não se interessaram tanto assim em comprar essa briga num passado recente, e o que os faz endurecer o discurso agora.

O aborto não era questão de honra para a maior igreja evangélica americana, a Convenção Batista do Sul, por exemplo. Ela aprovou resoluções até bem flexíveis sobre o assunto nos mesmos anos 1970 do Roe vs. Wade, caso que levou a Suprema Corte dos EUA a declarar o aborto como direito constitucional.

Os batistas aceitavam discuti-lo em casos de estupro, incesto, grave deformidade fetal e potenciais danos à saúde física e também mental da mãe. Ou seja, na prática, um laudo psiquiátrico que atestasse sofrimento materno com a gravidez poderia legitimar o procedimento aos olhos do pastor.

Corta para 2024: líderes da mesma igreja votaram dia desses por uma agenda contra a fertilização in vitro, encucados com embriões eventualmente descartados no procedimento. O "valor de cada ser humano, o que inclui necessariamente seres humanos embrionários congelados", acima de tudo, Deus acima de todos.

Ah, sim: tem dois anos que Roe vs. Wade foi para o buraco, após uma Suprema Corte de maioria conservadora reverter a decisão tomada em 1973.

É sempre bom lembrar que não são só os evangélicos tentando fechar o cerco contra a interrupção da gravidez. A católica CNBB ajoelha no mesmo juízo. "O Livro dos Espíritos", base para o kardecismo, criminaliza a prática com todas as letras. Isso para ficar em três crenças populares no Brasil.

E não dá para desacoplar o incômodo moral do oportunismo político. Lá nos EUA e cá no Brasil, o aborto provou ser uma eficiente cola para unir a direita cristã e eletrizar o eleitorado conservador. Assim direitos consolidados no passado tombam tal qual um castelo de cartas.

Com 22 semanas, o cérebro já forma redes complexas de neurônios, e o feto se mexe bastante na barriga. Dá para entender que muitos vejam plena vida ali. Argumento popular nessa turma: "Um estupro é sempre trágico, mas o filho não deve pagar com a vida pelo crime do pai".

Pesquisas mostram, contudo, que mulheres de todas as cores, classes sociais e religiões abortam. São muitas as que já têm filhos as esperando em casa. E aí? Se questionarmos o que fazer com elas, prendê-las ou não, talvez a resposta não seja tão punitiva.

Certa vez, conversei com uma evangélica favorável à descriminalização do aborto, filha de uma pastora pentecostal mortificada com sua posição. Um dia a jovem interpelou a mãe: se uma fiel aborta e chega dilacerada à sua igreja, o que você faz?

A pastora respondeu que orava por ela. A filha disse que, se não chamou a polícia, então ambas queriam a mesma coisa, que o aborto não seja criminalizado. Uma conversa possível pode partir daí.

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