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Sobre medo e coragem e por que quero que meu filho vá à escola neste dia 20

Minha resistência à lógica do medo não é coragem, como dizia Mandela, mas a necessidade de o controlarmos

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Preto Zezé

Ativista e empresário. Presidente do conselho nacional da Cufa (Central Única das Favelas)

Quero iniciar essa reflexão com a mensagem de Nelson Mandela, um homem que dedicou sua vida à paz, à união e não sucumbiu ao ódio e à vingança: "Aprendi que a coragem não é a ausência do medo, mas o triunfo sobre ele. O homem corajoso não é aquele que não sente medo, mas o que conquista esse medo".

Tal como Mandela, penso que devemos construir diques de coragem para conter a correnteza do medo.

Hoje recebi um comunicado da escola do meu filho José, o Pandinha. Há uma semana venho travando uma discussão com a Cynthia que, em meio ao pânico produzido, opõe-se a ida do José à escola neste fatídico dia 20 de abril. Ela conscientemente considera que ele deve ir, mas o coração de mãe e o receio de que algo inesperado ou ruim aconteça tem falado mais alto. Eu, por outro lado, quero que ele vá. E aí está o impasse familiar. Talvez esse deva ser o conflito vivenciado por milhares de corações e lares do país, diante das constantes ameaças ao ambiente escolar na internet.

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Retorno das aulas na escola estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, dias após aluno de 13 anos matar professora a facadas e ferir outras pessoas - Rubens Cavallari - 10.abr.23/Folhapress

A primeira alternativa é sempre reivindicar polícia na escola. Qualquer que seja a posição política, esta saída virou discurso recorrente para uma população apavorada e funciona como uma espécie de "calmante". Diria que o remédio até funciona, num primeiro momento.

Contudo, pesquisas realizadas em países com histórico de tragédias envolvendo armas, jovens e colégios —como os Estados Unidos— têm demonstrado que somente policializar a escola não resolve o problema e, portanto, não reduz o nosso medo. Com base nisso, gostaria de apresentar algumas questões importantes.

Não quero aqui julgar a decisão legítima dos pais de deixar seu filho em casa ou levá-lo à escola. Mas gostaria de dialogar com aqueles que, prezando pela segurança dos filhos, não querem levá-los à escola neste dia 20 de abril.

Quem quer que esteja tramando algo para este dia deve estar antecipando ou deixando para realizar seu plano quando as escolas estiverem mais descuidadas, tal como ocorreu nos casos de que infelizmente tivemos conhecimento. Afinal, para o dia 20, fortes esquemas de segurança estão sendo montados.

O medo, diante da ameaça do dia 20, tem uma função específica: nos fazer ficar em casa. Infelizmente acho que vai conseguir. Porém, isso fortalece ainda mais essa onda produzida e sustentada nos ambientes secretos e subterrâneos da internet. Falando nisso, duas coisas são importantes:

  • Não culpabilizarmos os jogos eletrônicos. Se assim fosse, todos nós estaríamos em guerra por conta das séries e filmes a que assistimos todos os dias. Meu filho ama videogame, mas também gosta de música e de animais, comove-se quando vê crianças em sofrimento. Já quis até doar todo o dinheiro do seu cofrinho para ajudar uma família em situação de rua. Ele só tem 7 anos. Os casos de violência recentes evidenciaram que os praticantes são pessoas não ligadas a games, mas envolvidas em ambientes clandestinos e ocultos na internet, sem controle e regulação, que capturam jovens com fragilidades emocionais vulneráveis à agenda do ódio.
  • As redes sociais, estas sim, merecem um profundo debate. Nós, pais e responsáveis, temos que discutir os seus usos, limitar o acesso das crianças e dos jovens aos conteúdos tóxicos baseados em discursos de ódio. Devemos coletivamente observar o que consumimos e evitar cairmos na ciranda da cooptação de eventuais consumidores mercantilizáveis que as plataformas, através da programação de algoritmos, buscam a todo momento.

Quanto mais interações conseguem, mais essas plataformas lucram. Intensos conflitos de ideias ou ideologias tornam a rede mais agitada, contribuindo para venderem mais caro os seus espaços de publicidade.

Há uma complexa reflexão a ser feita sobre como vamos conviver e evitar sermos tragados pela lógica de consumo das redes, sejam produtos, ideias ou comportamentos. Tudo é mercadoria comercializada nas prateleiras do mercado virtual.

Voltemos à escola. Essa discussão trouxe à tona uma questão que há tempos evitamos debater: a produção do ódio. Falo isso com a alegria de saber que a escola do meu filho, o Colégio Santa Isabel, aproveitou o ocorrido para se manifestar pela paz no mundo e nas escolas, mobilizando pais e alunos para se somarem a um movimento de esperanças e sentimentos bons.

Desejo profundamente que essa reação se desloque para uma ação proativa, que não seja apenas quando ameaças de tragédias nos tiram o sono. Que a polícia não seja nossa única alternativa. Isso, inclusive, torna o trabalho dos operários da segurança pública exaustivo e pouco eficiente.

Eu atuo em favelas no país inteiro e afirmo com confiança que os melhores resultados na redução dos índices de violência surgem nas escolas em que pais e responsáveis participam ativamente da vida escolar; onde a comunidade escolar é parte da vida de alunos, professores e corpo de funcionários; onde há acolhimento, escuta e decisão compartilhada, bem como responsabilidades; onde há um esforço coletivo para que a escola forme alunos para a vida, não somente para resultados com notas azuis.

A escola precisa se abrir para ser gerida, também, pelos pais e alunos, seus usuários diretos. Precisamos pensar numa escola além-muros. Temos valorosas experiências. Ninguém sozinho tem o monopólio da verdade e a saída única.

Minha resistência à lógica do medo não é ausência de coragem, como dizia Mandela, mas a necessidade de o controlarmos. Não nego a realidade da existência de armas nas escolas, nas periferias e nas favelas do Brasil. A realidade da escola pública é atravessada pela violência faz tempo. Entretanto, muitos agora estão levando mais armas às escolas para "se protegerem dos atentados", quando, de fato, são os discursos de ódio e a lógica da violência que dão força a estas ações —assim como as condições sociais em que vivemos, que produzem uma legião de jovens predispostos e de fácil recrutamento para estes ambientes de radicalização e ódio.

Penso que o dia 20 deveria ser a virada de página desta história, de uma escola que há tempos educa somente para consumirmos e acumularmos coisas individualmente, para uma escola que eduque para a tolerância, para a acolhida do diferente, do amigo em silêncio ou do que não se enturma.

Afinal, o que são nossas escolas? Espaços de aprendizagem na diversidade ou depósitos de seres humanos domesticados?

Neste dia, poderíamos fazer reuniões ou lives sobre os temas do cotidiano da escola e da família, como o sofrimento psicossocial, os dilemas familiares, a violência e suas diversas formas de manifestação.

Todos temos nossos medos.

Repito: não quero julgar quem tem mais ou menos coragem, tampouco classificar como negligente quem optou por levar seus filhos à escola ou de medroso quem escolheu não os levar. Só espero que possamos estar dispostos a construirmos outras lógicas de convivência e socialização.

Que nossa coletividade seja um ambiente de aprendizagem e a escola, da paz, do acolhimento e da aceitação ao diferente que habita em cada um de nós.

Espero que Cynthia mude de ideia e não somente leve José, mas que esteja lá como partícipe da programação que a escola oferece, um dia 20 de paz, amor e esperança!

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