Após ataque em Aracruz, professores e alunos enfrentam medo e desconfiança para retomar rotina

Sem protocolo de ações de apoio no país, escola no ES se recupera sem assistência externa

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Aracruz (ES)

O sinal que antes indicava o início do recreio agora desperta lembranças de um dia de terror na escola estadual Primo Bitti, em Aracruz (ES). Cinco meses após a unidade ser alvo de um ataque, professores, alunos e funcionários tentam recuperar a confiança no ambiente escolar e, até mesmo entre os colegas, para continuar as atividades letivas.

"Sinto um arrepio na espinha quando toca o sinal para o intervalo. Rezo todo dia para que, depois do sinal, eu só escute o som dos alunos descendo para o pátio e não o barulho de tiros como naquela manhã", conta a merendeira Maria da Conceição Stefanelli, 68.

Em 25 de novembro, o sinal serviu como um guia para o atirador invadir a escola no momento em que a maioria estaria fora das salas de aula. Poucos segundos após o início do intervalo, o adolescente de 16 anos, que era ex-aluno da unidade, entrou pela sala dos professores e começou a atirar. Ele matou três docentes e feriu outros oito.

Desde então, o sinal sonoro evoca lembranças do dia, medo do ataque se repetir e já levou alunos e professores a terem crises de choro e ansiedade.

Os alunos Ester Cristina Silva, 19, Ian dos Anjos Souza, 18, e Lara Ramos da Silva, 16, (da esq. para a dir.) dizem lembrar todos os dias do ataque que viveram em 25 de novembro do ano passado
Os alunos Ester Cristina Silva, 19, Ian dos Anjos Souza, 18, e Lara Ramos da Silva, 16, (da esq. para a dir.) dizem lembrar todos os dias do ataque que viveram em 25 de novembro do ano passado - Karime Xavier / Folhapres

Além de conviver com situações cotidianas que despertam o trauma, a comunidade da Primo Bitti também reclama que recebeu pouca assistência do poder público —não há no país um protocolo para intervenções após esse tipo de violência.

Nos últimos dez meses, o Brasil viveu uma onda sem precedentes de ataques a escolas, com uma média de mais de um caso a cada 30 dias.

"Estamos desamparados, sozinhos lidando com o trauma dessa violência. Tem cinco meses que ocorreu o ataque e não há um plano para nos ajudar a recuperar nossa saúde, nossa segurança, nossa escola", diz Luiz Carlos Gomes, 51, professor de sociologia.

Estudantes, familiares e docentes reclamam da ausência de ações para apoio psicológico dentro da escola.

"Depois do ataque, pintaram a escola, fizeram um painel bonito no muro da frente e só. O plano de recuperação é esse: uma maquiagem. Como se um banho de tinta fosse curar a dor que estamos vivendo depois dessa violência", diz Gomes.

Das poucas mudanças físicas feitas na unidade está a transformação da sala de professores (onde os docentes foram atingidos) em uma espécie de sala de leitura. Mesmo assim, ninguém consegue usar o espaço.

"É um esforço muito grande continuar dando aula depois de tudo o que aconteceu. Eu não consigo entrar na sala onde minhas colegas foram baleadas e mortas, evito até passar em frente porque é difícil controlar as lembranças", conta Ana Paula Alvarenga, 53, professora de inglês.

A sensação de insegurança é tão grande entre os alunos que eles contam ser comum conversarem sobre o que fariam caso enfrentassem um novo ataque. "A gente desce para o intervalo e fica pensando em como se proteger, para onde correr ou se esconder. A gente sempre fala sobre isso para não sermos pegos desprevenidos de novo", conta o estudante Ian dos Anjos de Souza, 18.

Eles também dizem que passaram a ficar mais atentos e a desconfiar do comportamento de outros estudantes. "Depois do que aconteceu, a gente começa a desconfiar de qualquer um que não conhece. Fico assustada quando vejo algum aluno fazendo comentários mais agressivos ou piadas sobre o ataque", conta a aluna Ester Cristina Silva, 19.

"Outro dia um menino disse que estava com raiva e que, se pudesse, também matava todo mundo. Eu fui contar para os professores, mas não sei se fizeram alguma coisa."

Eles dizem ainda sentir que mesmo os professores passaram a temer os estudantes depois do ataque. "Dá para sentir que eles não têm mais a mesma confiança nos alunos, que alguns ficaram mais distantes e estão se segurando para continuar na escola. E é compreensível, como você volta a confiar depois que um aluno atira contra você e seus colegas?", relata Ian.

Cleo Garcia, pesquisadora do Gepem (Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Moral) da Unicamp e que participou de um trabalho na Primo Bitti após o ataque, diz que a desconfiança e insegurança são comuns após um trauma desse tipo, mas poderiam ser mitigadas com uma série de ações contínuas e integradas.

"É um trauma muito grande para toda a comunidade e cada um processa a dor e o medo de uma forma. Por isso, muitas ações são necessárias e precisam ser combinadas. Infelizmente, não temos nenhum plano no país, não há verba prevista para ajudar essas escolas. Ou seja, elas lidam sozinhas com toda a complexidade desse trauma coletivo", diz.

Entre as medidas necessárias, Cleo cita a disponibilidade de acompanhamento psicológico e psiquiátrico para todos, a previsão de licenças estendidas aos funcionários e mudanças curriculares para melhorar a convivência escolar.

"A desconfiança e hostilidade no ambiente escolar prejudicam ainda mais a superação do trauma. Alimenta ainda mais o contexto que levou ao ataque. Essas escolas precisam de ajuda para conseguir estabelecer um convívio mais saudável e acolhedor."

Apesar de não haver ainda no Brasil pesquisas que indiquem as consequências após ataques a escolas, estudos de países que convivem há anos com a situação, como os Estados Unidos, apontam como podem ser devastadores os efeitos desse tipo de violência em toda a comunidade escolar.

Um estudo da Universidade Stanford identificou que 100.000 crianças americanas estudavam, apenas entre 2018 e 2019, em escolas que foram alvo de ataques. A pesquisa descobriu uma maior incidência do uso de antidepressivos e maior possibilidade de abandono escolar e repetência entre esses alunos.

Consequências que já começam a dar os primeiros indícios na Primo Bitti, ainda que não exista um acompanhamento que confirme a situação. Todos os professores, funcionários e alunos que conversaram com Folha contaram ter buscado atendimento psicológico ou psiquiátrico e o uso de antidepressivos após o ataque.

"Posso olhar para a escola várias vezes, mesmo que tenham mudado a pintura, mas ainda vejo o que aconteceu naquele dia. Eu tive que tomar remédios para dormir nos primeiros meses, consegui parar, mas ainda vou no psicólogo", conta a estudante Lara Ramos da Silva, 16. Ela ainda se recupera fisicamente do ataque, já que quebrou o tornozelo ao pular da janela de uma sala de aula para fugir do atirador.

Alunos pularam das salas do primeiro andar da escola Primo Bitti para fugir do atirador
Alunos pularam das salas do primeiro andar da escola Primo Bitti para fugir do atirador - Karime Xavier / Folhapress

Professores e alunos também contam que as faltas dispararam neste ano, já que supostas ameaças de novos ataques à escola se tornaram frequentes. "Quase toda semana alguém recebe mensagem de ameaça e o boato se espalha. A gente não sabe se é verdade ou não, mas, depois de ter vivido isso, eu não vou arriscar. Minha mãe mesmo me diz para ficar em casa", diz Ester.

Outro efeito já vivido na escola foi a perda de professores. Além dos docentes que morreram ou ainda se recuperam fisicamente, pelo menos outros quatro continuam afastados para tratar da saúde mental ou pediram transferência.

"Eu só continuo aqui por causa dos alunos, que me mandavam mensagem, quando estava afastada, pedindo para que eu voltasse. Eles se sentem abandonados, precisam do nosso apoio e da nossa presença. Mas é difícil continuar", diz Ana Paula.

À Folha o secretário de Educação do Espírito Santo, Vitor de Angelo, disse que todas as demandas da comunidade escolar estão sendo analisadas.

Ele disse que há um grupo intersetorial composto pelas secretarias de Educação, Saúde, Segurança Pública e Assistência Social acompanhando a situação e que no fim de abril foi lançado um plano de prevenção e formação para os funcionários sobre o que fazer em caso de emergência.

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