No lugar de me paralisar, o fim da vida me motivava, diz mulher com doença rara

Empreendedora social lança livro sobre trajetória após diagnóstico de talassemia aos 3 anos

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São Paulo

No fim da década de 1960, os pais de Merula Steagall ouviram do médico que sua filha, à época com três anos, não passaria dos cinco porque tinha talassemia, doença genética que afeta a produção de hemoglobina. A mãe deveria ainda interromper sua gestação, pois havia grandes chances de o bebê a caminho ter o mesmo diagnóstico.

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Hoje com 53, a empreendedora social à frente da Abrasta (Associação Brasileira de Talassemia) e fundadora da Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia) relembra sua infância e os desafios vividos em cinco décadas de vida no livro "Coragem Está no Sangue".

"Não é uma história de tragédia, de mostrar como era difícil, penoso, nada disso. É uma forma muito leve de mostrar que, apesar das dificuldades, a pessoa pode ter uma vida plena."

Vencedora do Prêmio Empreendedor Social 2013, Merula sobreviveu pois foi diagnosticada na época em que houve um avanço nas transfusões de sangue. E apesar de ter uma noção da morte muito materializada, ela usava isso como impulso. Aprendeu sete línguas, fez diversos cursos e não ficava parada dentro de casa.

"Quando se é muito jovem e a terminalidade está ao seu lado, desenvolve-se um sentido de pressa. Foi um pouco esse sentido que me impulsionou a vida inteira porque como eu achava que já estava chegando o fim, eu tinha que correr para fazer mais alguma coisa."

Além da doença, a trajetória encontrou ainda muitos obstáculos, como o câncer de um filho e a morte precoce de uma filha. "Não adianta ter uma fé ou alegria quando tudo está maravilhoso. Tem que demonstrar tudo isso quando tem turbulência."

 

Como é escrever e lançar esse livro 50 anos após o diagnóstico? É uma grande realização. Foi um momento de intensa reflexão. Muitas coisas que passamos na vida não fazem sentido quando estamos passando, mas depois vemos que os pontos se conectam.

O livro não é uma história de tragédia, de mostrar como era difícil, penoso, nada disso. É uma forma muito leve de mostrar que, apesar das dificuldades, a pessoa pode ter uma vida plena. Conto alguns momentos, algumas situações que aconteceram, que eram de uma grande prova para mim, mas com fé, determinação, coragem, soube aceitar, lidar, esperar e tranquilizar.

Como foi crescer com talassemia? Fui diagnosticada aos três anos. Então da mesma forma que se ensina para uma criança que ela tem que escovar os dentes, e ela não gosta disso, mas aprende a conviver e acaba se adaptando, meu tratamento desde muito cedo fez parte da minha rotina.

Só que minha vida também era muito intensa, então era um fato que dizia respeito só a mim, não ficava falando, não estava na pauta esse tema, da mesma forma que não se coloca na pauta que tomou banho.

Quando se é muito jovem e a terminalidade está ao seu lado, desenvolve-se um sentido de pressa. Foi um pouco esse sentido que me impulsionou a vida inteira porque como eu achava que já estava chegando o fim, eu tinha que correr para fazer mais alguma coisa. Foi muito interessante porque no lugar de me paralisar, o fim me motivava.

Tinha uma proteção muito grande da minha mãe, ela queria me proteger, pensando em evitar ao máximo de me colocar em risco que antecipasse a morte, então quanto menos esforço, na cabeça dela, melhor, mas eu evitava ficar em casa justamente para não ter esse manto de proteção. Fazia cursos de gastronomia, marcenaria, tudo que aparecia para poder estar ocupada. E a mesma coisa com meus amigos, não deixava eles quietos.

Era tudo um reflexo dessa questão de a morte estar perto. Eu valorizava muito a vida, queria preservar o máximo minha saúde.

Como esse seu modo de vida era visto? As pessoas sempre me viam muito feliz, muito alegre e me falavam: ‘Queria muito ser você. Você tem uma família maravilhosa. Queria tanto ter sua sorte’. Só que no fundo as pessoas não sabem o que estava passando. Elas poderiam ir a um acampamento ficar 20 dias, mas a minha mãe não me deixaria ir porque tinha que tomar sangue a cada 15 dias.

O que era ter talassemia na época em que você foi diagnosticada? Quando meus pais descobriram, falaram para não se apegarem muito porque eu ia viver no máximo cinco anos. E disseram para abortar o nenê que estava a caminho porque a chance de ter [a doença] era muito grande. Ela não abortou, ele não tem a talassemia e o outro [irmão, 11 meses mais novo] não tem nada, só eu.

A transfusão tinha acabado de ser conhecida, então as pessoas que tinham antes de mim morriam por falta de opção de tratamento. O sangue não era seguro, quem doava era indigente, drogado, porque era comercializado, pagava-se pelo sangue. Por isso as pessoas falavam que eu não ia viver, pelo risco grande que representava a transfusão.

Mas eu tive a sorte de nascer no momento para pegar uma ponte para a próxima evolução científica. É um pouco isso que eu mostro também no livro, como nesses 50 anos evoluiu a ciência e trouxe novos conhecimentos e descobertas. Isso permite para pessoas que tem hoje a mesma doença genética um cenário completamente diferente do que foi aquele.

Qual a diferença para uma criança que hoje recebe o mesmo diagnóstico? Dependendo de onde vai nascer, dentro das grandes capitais, hoje existe um conhecimento, então o diagnóstico vai ser rápido. Se mora no campo, pode ser que morra antes de saberem que doença tem, porque é uma doença rara ainda. No Brasil são 800 pacientes. 

Mas se estiver num centro que nem São Paulo, com um bom médico, hoje tudo é muito mais fácil. Tem um sangue muito seguro, tem toda a infraestrutura da transfusão. Nenhuma criança vai ser colocada no risco que éramos colocados. Depois vieram novos medicamentos e novos conhecimentos que foram permitindo esse avanço.

Qual a perspectiva de vida de quem tem talassemia nos dias atuais? A pessoa mais velha que eu conheço morreu com 55 anos. É da minha geração. Na época que eu nasci, não tinha ninguém com mais de cinco. Então hoje eu tenho 53, 55 foi o máximo, mas não significa que não vou poder chegar aos 57, e a próxima geração vai um pouco mais.

Quem nasce hoje não tem nenhuma limitação desde que tenha acesso ao tratamento correto. Hoje tem conhecimento, tem tecnologia para avançar muito mais. As complicações que eu tenho como uma adulta com talassemia, porque meu corpo foi recebendo transfusões sem controle, sem qualidade, essas pessoas que começam hoje com tratamento vão poder ter muitos mais recursos.

Quando você encontrou seu propósito? Em algum momento da minha vida, eu senti a gratidão transbordando. Sempre tive muita gratidão porque gostava tanto da vida que eu falava que era uma pessoa de sorte, me considerava uma privilegiada, e os meus planos davam certo. E eu não tinha plano B, só plano A.

Nesse momento da gratidão, que aflorou, em 2000, tivemos uma experiência com meu filho, que teve câncer, ele superou isso, e uma filha faleceu, mas eu não posso contar toda a história se não a pessoa tem que ler também para ver que não foi fácil. 

Um dia, uma moça me ligou, a Claudia, e falou que tem dois filhos com talassemia, que ficou sabendo que eu era uma das pacientes mais velhas e queria que eu ajudasse porque a associação de talassemia estava fechando as portas porque estava com uma dívida.

Eles iam fazer uma assembleia para fechar, falei que eu ia e aí encontrei meu propósito. Só precisava ter alguém para segurar uma bandeira para aquela causa entrar na pauta, e percebi que aqueles meus talentos de negociante poderiam ser usados para uma causa por um propósito mesmo. 

Que mensagem você quer passar com sua história? Mostro que não adianta ter uma fé ou alegria quando tudo está maravilhoso. Tem que demonstrar tudo isso quando tem turbulência.

Minha vida me colocou em xeque muitas vezes, frente a frente com a turbulência e eu não abandonei o navio porque eu confiava que o pai era Deus. O livro mostra essas cinco décadas de evolução, mostra que todos nós temos muitas dificuldades e muitos ingredientes para superar isso.

Mostra a certeza que estamos no processo de evolução moral, espiritual, então o sentido da vida não é ter títulos, mas conseguir realmente avançar no seu propósito moral e espiritual e como isso ficou claro para mim. 


Raio-X

Merula Steagall, 53

Formada em administração, é mentora da Abrale, que produz e dissemina conhecimento, oferece suporte e mobiliza parceiros para alcançar a excelência e a humanização no cuidado integral de pacientes onco-hematológicos, e preside a Abrasta, focada em pessoas com talassemia.

Coragem Está no Sangue

  • Preço R$ 55 (239 págs.)
  • Autor Merula Steagall
  • Editora Bella Editora
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