Ritual, conexão e cura: riso é ferramenta para 2023

Para pesquisadores, humor é fundamental para o ser humano e merece mais espaço em nossas vidas

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São Paulo

"Eis que então, surgindo do nada, uma figura estranha aparece com uma peruca prateada, um tecido enrolado no quadril como uma minissaia, um andar sinuoso com os joelhos bem colados um no outro, meio cobra e meio mulher. É um hotxuá que se aproxima e se coloca na fila entre as mulheres. Sua dança também é sutil, com um leve exagero, numa imitação do que as mulheres fazem, mas com um tom jocoso e matreiro. As mulheres todas tentam manter o canto, mas é perceptível que estão morrendo de rir, assim como os homens e todo o restante da tribo que assistem ao ritual."

As palavras expressam o encanto do palhaço Ricardo Puccetti, pesquisador do Lume Teatro, ao assistir à performance de um hotxuá durante a gravação do documentário que retrata essa figura do cotidiano do povo Krahô, em Tocantins.

No povo Krahô e em comunidades originárias da América do Norte, ainda existe o palhaço sagrado, responsável por provocar o riso no dia a dia, que desapareceu em outras comunidades com o passar do tempo.

Ricardo Puccetti em cena do espetáculo La Scarpetta; para o palhaço, o riso tem poder - Arnaldo Torres/Divulgação

Puccetti relata que as manifestações cômicas surgiram com o próprio ser humano e integravam rituais. Só depois foram delimitadas a alguns espaços. "Surge o teatro japonês, o teatro indiano, o teatro grego. As artes performáticas vão deixando de ser algo cotidiano para se transformarem em momentos específicos, em espetáculo em que um faz e os outros assistem."

Se nas artes o movimento foi do espaço amplo para o restrito, na ciência o caminho foi oposto. Somente nos últimos séculos o riso e o sorriso despertaram maior interesse nos pesquisadores.

Foi no século 19, por exemplo, que o médico francês Guillaume-Benjamin-Amand Duchenne descobriu, a partir de experiências com choques nos músculos da face, que o sorriso verdadeiro é simétrico e não se limita à boca.

"O movimento, quando autêntico, é combinado com a contração da musculatura ao redor dos olhos (músculo orbicular do olho), o que ergue também as maçãs do rosto e enruga a pele no canto dos olhos", escreve o psiquiatra Daniel Martins de Barros, professor colaborador da Faculdade de Medicina da USP, no livro "Rir é Preciso".

A obra, conta o autor, é uma forma de ressaltar o poder do riso e dar ferramentas para nos reerguermos, reconstruirmos relações e recuperarmos nossas emoções positivas após a pandemia.

"Quando rimos, sinalizamos que está tudo bem, passamos uma mensagem de tranquilidade mesmo em uma situação ruim. Encontrar aspectos positivos inclusive nas situações adversas é muito importante para seguir em frente, e o riso é uma maneira de estimular isso", afirma.

Um exemplo disso, menciona Barros, é o tombo. A queda gera instantes de tensão, mas, se a pessoa se levanta e sorri, acalma os demais. Pode não ser o melhor cenário —ela pode ter machucado a pele, rasgado a roupa—, porém o sorriso sinaliza que vai ficar tudo bem.

Como rir

Para rir durante o dia é preciso ter uma boa noite de repouso. "Estamos em uma sociedade que não é muito amiga do sono. Pela quantidade de atividades, as pessoas vão cortando as horas de descanso, mas isso tem um preço", lembra o médico Gustavo Moreira, pesquisador do Instituto do Sono.

Ele explica que o sono impacta as funções cardíaca e respiratória, o metabolismo e a atividade intelectual, incluindo a concentração e o desempenho. Quando dormimos mal, as funções cerebrais ficam alteradas e, além da sonolência durante o dia, podemos ter problemas de humor. Nessas situações, pequenos incômodos ganham grandes proporções e uma toalha fora do lugar, por exemplo, pode ser suficiente para iniciar uma briga. "Dormir bem é fundamental para ficar bem-humorado", diz Moreira.

Geralmente, um adulto precisa dormir entre seis e dez horas, sendo que para cerca de 70% das pessoas a necessidade seja de sete a nove horas. Acordar se sentindo descansado, sem dor de cabeça ou dor no corpo, e permanecer alerta durante o dia são indícios de que o sono está adequado, mesmo que o humor varie ao longo do dia de acordo com o tipo de perfil.

Quem é matutino, afirma Moreira, começa a ficar com sono e de mau humor ao escurecer, enquanto para pessoas vespertinas as primeiras horas da manhã são mais difíceis e é no final do dia que estão mais bem-humoradas.

O segundo passo para rir é observar o outro. "O grande poder do riso, do humor, vem da sua capacidade de nos conectar e percebemos isso porque estamos olhando um para o outro, prestando atenção", destaca Barros. "O riso é muito mais fácil, intenso e eficaz quando é compartilhado, quando rimos juntos e o riso reverbera no grupo."

Se alguém está sendo excluído, se sentindo mal, é um sinal de que o humor foi negativo ou agressivo –e isso muda com o tempo. Aquilo que era engraçado no passado hoje pode ser considerado uma ofensa, conforme as alterações da sociedade.

Há, contudo, o humor atemporal. "A história muda, mudam os costumes, o que é aceitável ou não. Mas os grandes vão além disso. Chaplin, por exemplo, trabalha a relação do poder. O Gordo e o Magro trabalham com o fracasso, com o erro, com nossa incapacidade de controlar a vida, algo muito humano", analisa Puccetti.

Para ele, a palhaçaria é um ofício, uma arte e, principalmente, um território. Trata-se de um lugar de onde o mundo é experimentado com outro olhar. Há o princípio de reinventar as coisas, ver por outros ângulos, relacionar-se com objetos e espaços de outra maneira, o que resgata a força do brincar que perdemos conforme crescemos.

O palhaço existe no encontro de olhares. Isso inclui o outro, brincar junto. Meu objetivo é despertar no maior número de pessoas o estado de brincadeira. Não vou resolver a vida de ninguém. Não sei alguém vai mudar sua visão de mundo, mas as pessoas brincam e quando se entregam ao brincar algo muda. Isso é curativo. Rir sem intenções, sem expectativas, é curativo.

Ricardo Puccetti

Palhaço e pesquisador do Lume Teatro

O palhaço recorda então uma experiência na ala psiquiátrica de um hospital. Ele chegou ao local e começou a interagir com o espaço, a cadeira e a mala que havia levado. Aos poucos, um paciente se aproximou e começou a falar.

"Ele falava sem parar e formamos uma dupla. Quando acabou, um psiquiatra veio conversar comigo. Ele perguntou o que eu tinha feito porque aquele paciente estava lá há algum tempo e não falava nada. Isso não sou eu. Isso é a força desse brincar, desse jogo de você não se policiar e simplesmente existir. É isso que vejo de curativo no trabalho da palhaçaria. Você chega a tocar essa universalidade do humano e daí é curativo. Não tem como não ser de alguma forma curativo e necessário."

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