Questão territorial tem impacto no número de suicídio entre indígenas

Incidência é de duas a três vezes maior que na população brasileira em geral, segundo pesquisa da Fiocruz publicada na revista científica The Lancet

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São Paulo

Para os indígenas xakriabás, quando um jovem tira a própria vida, é como se fosse uma morte coletiva. Perde-se com ele um conhecimento que poderia ser passado para a próxima geração.

Os casos de suicídio na juventude são frequentes no território, localizado no norte de Minas Gerais. Nesta terça-feira (19), houve mais uma tentativa, diz Drika Xakriabá, 27, que convive com as notícias desde a infância. "Quando cheguei na adolescência, isso para mim era uma forma de morte normal."

A incidência de suicídio entre indígenas é de duas a três vezes maior que na população brasileira como um todo, segundo pesquisa da Fiocruz publicada na revista científica The Lancet na última semana. Crianças, adolescentes e jovens de 10 a 24 anos têm as maiores taxas de lesões autoprovocadas.

Homem com cocar com cabeça baixa, triste, que remete ao formato de montanhas
Fatores como falta de terra, perda de laços culturais, marginalização na cultura moderna, racismo e falta de perspectiva de futuro contribuem para número de suicídios entre indígenas - Catarina Pignato

Em todo o ano de 2022, foram registradas 177 mortes por suicídio entre indígenas, segundo dados da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) —número 19% maior que o contabilizado no ano anterior (148). Até junho de 2023, foram 60.

A maior incidência é nos estados do Amazonas e Mato Grosso do Sul. Mas segundo o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), há um aumento de preocupação sobre a questão em estados como Minas Gerais e Paraná.

Os xakriabás entraram na lista após uma série de suicídios consecutivos no último ano —três dos quais vitimaram jovens no mesmo local. Há dez, o suicídio de uma menina de 12 anos instaurou um alerta na comunidade.

Foi por ter presenciado ao longo da vida a trajetória de pessoas que se suicidaram, além de ouvir histórias e relatos sobre perdas e sofrimento, que Drika Xakriabá analisou as tentativas de autoextermínio na aldeia Imbaúba (Dazakru Warãwdê, na língua materna), onde nasceu, em 2022. A pesquisa foi o trabalho de conclusão de curso de psicologia na Ufcat (Universidade Federal do Catalão), em Goiás.

O povo xakriabá não vê a morte como o fim da vida e prefere não falar sobre os suicídios para não atraí-los. Em sua cosmologia, há também fatores espirituais que explicam os eventos e que nem sempre são compartilhados com os não indígenas.

Mas sobre a vida, acham mais fácil falar: "Território para nós é vida, praticar nossa cultura [é vida], manter viva nossa identidade como povo [é vida]", diz Drika.

Imbaúba é uma das 36 aldeias do povo xakriabá, que ocupa um território perto das margens do Rio São Francisco, na cidade de São João das Missões. "Nas proximidades das margens", ressalta Drika, uma vez que o povo não tem acesso ao Rio São Francisco e sofre com a falta de água.

A psicóloga e indigenista Marta Mamédio, do Cimi, diz que os xakriabás têm uma ligação sagrada com o rio, apesar do acesso negado. O território foi demarcado em 1987, quando havia ali 3.000 habitantes. Hoje, são 12 mil dividindo o mesmo espaço e quantidade de alimentos. Eles têm tentado ampliá-lo.

A questão territorial tem grande impacto no adoecimento mental, diz Drika. "São povos que vêm sofrendo inúmeras violações de direitos".

Na região do norte de Minas, apesar de ter mais de 12 mil xakriabás, os indígenas também sofrem com o racismo. "É bem forte principalmente entre estudantes que precisam ir para a cidade estudar. Teve alguns casos inclusive de jovens que se suicidaram após terem saído do território", diz Mamédio.

O psiquiatra Rodrigo Martins Leite, professor colaborador do Instituto de Psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo), diz que falta no Brasil uma política sustentável de prevenção ao suicídio que considere populações específicas.

"Está se criando uma narrativa de que existe um pacote de prevenção do suicídio que tem que se encaixar em todos os grupos, mas precisa se especializar em subpopulações", diz sobre o Setembro Amarelo, que considera ineficaz.

Segundo o psiquiatra, estudos apontam como fatores para o suicídio indígena aspectos mais gerais como acesso à terra, pobreza e vulnerabilidade social, além de outros como falta de identificação com a cultura pregressa e marginalização na cultura moderna, estigma, desintegração das famílias, uso de substâncias como álcool e falta de perspectiva de futuro.

"Falar sobre suicídio não é falar sobre depressão somente, o fator mental é importante, mas suicídio também é um problema social", diz Leite.

O técnico de atenção psicossocial e promoção do bem-viver da Secretaria da Saúde Indígena (Sesai), Matheus Cruz, diz que é necessário ainda considerar que cada etnia indígena tem cosmologias, contextos e territórios específicos —inclusive, não são todas as que registram suicídios.

A pasta argumenta ainda que o número de suicídios entre indígenas não é maior que no resto da população, como sugere pesquisa publicada na Lancet e levantamentos feitos pelo Cimi e pelo próprio Ministério da Saúde.

Segundo Cruz, fazer a estimativa por 100 mil habitantes não deveria se aplicar a uma população tão pequena quanto à indígena, que representa 0.8% dos brasileiros (1,7 milhão, segundo o último Censo do IBGE).

O psicólogo, porém, concorda que é necessário intensificar a prevenção ao suicídio principalmente nas regiões de maior incidência, como Norte e Centro-Oeste, e aumentar o número de psicólogos, assistentes sociais e antropólogos que prestam assistência às populações.

No Mato Grosso do Sul, as lideranças da juventude do povo guarani-kaiowá têm como desafio prevenir o suicídio. Na cosmologia deles, os indígenas são acompanhados por pássaros guardiões, chamados de mokoi e gwyra, que às vezes se afastam e levam ao entristecimento.

Segundo o líder jovem Janio Kaiowá, o contato com a floresta e com os rios é importante para o povo — referência que vem sendo perdida pela juventude.

"Alguns jovens vivem à beira das rodovias, sem acessos à saúde e à educação, com ataque frequente dos territórios, assassinatos de famílias e lideranças, e um preconceito muito grande. Isso tem gerado grandes consequências, principalmente nos jovens, e não tem apoio psicológico na aldeia", diz Janio.

No momento, diferentes etnias indígenas aguardam a votação do marco temporal. Na tarde desta quarta-feira (20), o Supremo Tribunal Federal (STF) fará a décima sessão sobre a proposta, que determina que as terras indígenas devem se restringir à área ocupada pelos povos na data da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Onde procurar ajuda

CVV (Centro de Valorização da Vida)
Presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato telefone 188 e pelo site cvv.org.br

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