Assim como a China, Brasil já censurou dados sobre surto durante ditadura

Entre 1971 e 1974, sob governos militares, país ocultou maior epidemia de meningite da história

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São Paulo

A exemplo do que ocorreu na China, em que as autoridades esconderam informações sobre o surto de coronavírus, o Brasil também já viveu situação semelhante em relação à meningite meningocócica durante a ditadura militar.

O ano era 1971. Sob o comando do general Emílio Garrastazu Médici, o país vivia o “milagre econômico”, o auge da repressão e da tortura, além de censura nas artes, televisão e imprensa.

Na zona sul de São Paulo, eclodia a maior epidemia de meningite da história do país, mas autoridades sanitárias não podiam falar a respeito, muito menos a imprensa. A omissão levou ao avanço da doença, que em quatro anos já tinha assolado o país.

Em 2008, a jornalista Eliane Catanhêde relatou sobre a censura que sofreu à época:

"O país começou a viver uma epidemia de meningite, com crianças morrendo e todo mundo em silêncio, até que Almeida Machado [sanitarista, ministro da Saúde de Geisel] me deu uma corajosa entrevista reconhecendo a epidemia, falando sobre os riscos e alertando as pessoas sobre como agir nas circunstâncias. 

Naquela época, usávamos máquinas de escrever e telex. Pois não é que a entrevista foi censurada pela ditadura antes mesmo que o longo telex chegasse inteiro à sede da revista Veja em São Paulo? Por quê? Versão: porque não havia vacinas e seria ‘alarmar a população inutilmente’. Fato: além disso, queriam 'proteger a imagem do governo'.

Na cabeça estúpida dos censores da ditadura, era mais importante manter as pessoas ignorantes sobre os riscos do que ensiná-las a tentar diminuí-los ao mínimo possível. E eles, os censores, às vezes eram mais realistas do que o rei.

Quando cobrei do ministro o corte da reportagem, ele ficou indignado. Telefonou a Geisel, que também ficou indignado, e me chamou de volta ao gabinete para repetir tudo de novo (...). Almeida Machado já tinha encomendado ao exterior lotes de emergência da vacina. Não eram suficientes, e ele se concentrou nos locais mais afetados (...)", disse a jornalista.

“As autoridades consideravam a epidemia um fracasso. Logo, empanava o brilho do ‘milagre econômico’. Por isso, optaram por negá-la’’, declarou o médico epidemiologista José Cássio de Moraes , em entrevista ao portal de notícias Viomundo, em 2009.

 

Em artigo publicado na revista do Cremesp (conselho de medicina paulista) em 2005, o epidemiologista José Cássio de Moraes  e a especialista em medicina preventiva Rita de Cássia Barradas Barata contam que a chegada do general Ernesto Geisel, em 1974, facilitou a mudança de atitude das autoridades em relação à epidemia.

Em julho daquele ano foi criada a Comissão Nacional de Controle da Meningite, encarregada de traçar a política de vigilância epidemiológica. Os casos de meningite em São Paulo começaram em maio de 1971, no bairro de Santo Amaro e áreas contíguas, que concentravam o maior número de favelas do município.

Em novembro do mesmo ano, atingiram São Miguel Paulista, na zona leste. Em junho de 1972, irromperam na zona norte, começando por Santana e Tucuruvi. A Lapa, na zona oeste, foi o próximo bairro a ser afetado, seguido pelos demais da região. A epidemia chegou ao centro de São Paulo em setembro de 1973. Em 1974, não havia uma única área da cidade sem registro de casos.

A incidência, durante o período de 1970 a 1977, variou entre 13,04 casos por 100 mil habitantes na Aclimação (centro) a 101,28 na Vila Nova Cachoeirinha (zona norte). A taxa de letalidade ficou entre 7% e 14%. Só no município de São Paulo, foram 12.330 casos e cerca de 900 óbitos em 1974.

O caso é emblemático para lembrar o quanto a saúde é dependente da política e pode sofrer impactos devastadores sob governos autoritários, que censuram informações. A situação na China, que pode perder até 2% do PIB por conta da epidemia do coronavírus, está aí para não deixar dúvidas. 

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