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Rotina do Samu tem resgate em série de idoso na periferia e faxina exaustiva em ambulância

Viaturas atenderam quase 6 mil suspeitas de Covid-19; socorristas mudam rotina para evitar contaminação em SP

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 Equipe do Samu higieniza ambulância após resgate de pessoa com suspeita de coronavírus

Equipe do Samu higieniza ambulância após resgate de pessoa com suspeita de coronavírus Lalo de Almeida

São Paulo

"Delta zero um, código 36. Mulher, 74 primas, possível Covid, QAP? QTH região do Morumbi", diz uma voz chiada, na frequência de rádio do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).

O chamado é para atender uma idosa de 74 anos, em Paraisópolis (zona sul de SP), com sintomas de Covid-19, como febre, tosse seca e falta de paladar. Uma equipe paramentada especialmente para este tipo de ocorrência, com avental, protetor de rosto, máscara e luvas, se dirige ao lugar.

Como se trata de uma numeração irregular da via, a viatura passa algumas vezes por ruas próximas sem avistar os familiares da paciente. Parentes da idosa marcam com o Samu em um mercado próximo, que serve de ponto de referência, e enfim o socorro chega.

Casos assim, agora, tomam ao menos metade do tempo das ambulâncias simples do Samu, aquelas sem médico, estimam socorristas. Isso quando não são situações mais graves em que os pacientes, após dias com a doença e sem tratamento, têm piora repentina e a ajuda chega tarde demais.

O Samu atendeu 5.998 ocorrências de casos suspeitos ou confirmados entre os dias 1º de março e 24 de abril, uma média 4,6 por hora, segundo a gestão Bruno Covas (PSDB) divulgou na última semana. No geral, a prefeitura afirma que houve aumento de 30% nos atendimentos em abril.

Até a última semana, os médicos do serviço ainda estavam incumbidos de atestar todos os óbitos, medida revertida após constatação de que perdia-se mão de obra preciosa para salvar vidas. Agora, concentram-se apenas nas remoções para hospitais.

Segundo socorristas ouvidos pela Folha, parte relevante das pessoas atendidas têm perfil parecido ao da aposentada Anísia Moreira dos Santos, 74, cujo atendimento foi acompanhado pela reportagem. Além de idosos, vivem na periferia da capital ou em casas de repouso, em habitações onde é muito difícil manter o isolamento social.

Anísia tenta se manter em casa, mas sai para ir ao mercado e ao banco. Tem contato mais direto com os dois filhos com quem vive, num bairro onde as ruas estão sempre lotadas de gente.

Filha de Anísia, Josefa dos Santos Souza, 41, diz que o que levou a desconfiar de coronavírus é que a mãe geralmente não fica doente. Além disso, todos os sintomas batem com os do vírus. "Desde ontem, teve perda do paladar e não consegue comer", diz ela.

Após algumas perguntas, às quais Anísia responde reclamando da boca amarga e de dores, os socorristas decidem que ela será internada. Ela sai andando, amparada pelos funcionários do Samu, pela viela apertada onde mora.

Segundo o governo estadual, pessoas com mais de 60 totalizam 73,6% das mortes em São Paulo. Em bairros periféricos, porém, há um índice maior de pessoas mais jovens entre as mortes do que em regiões mais ricas.

"Atendemos casos de pessoas que passam alguns dias com a doença em casa, achando que vão melhorar, e de repente são encontradas por parentes já mortas", diz um médico do Samu.

Para especialistas, populações pobres têm dificuldades para seguir tratamentos de doenças crônicas e dietas balanceadas. Em situação muitas vezes pior do que população periférica, moradores de rua também são pacientes frequentes do Samu, sob suspeita de coronavírus.

A prefeitura da capital tem centros montados apenas para atender esse público. Nesta semana, uma mulher de 44 anos, usuária de crack, teve complicação no seu quadro e foi transferida para o Hospital Universitário, na USP.

Seria um caso simples para a o grupo de atendimento, mas, na prática, ele começa antes da ocorrência e termina bem depois. Toda vez que ocorre um código 36, de casos suspeitos de coronavírus, os socorristas têm de se paramentar com avental, luvas, protetor de rosto e máscara.

Ao fim do atendimento, o trabalho é maior, pois é preciso desinfetar a ambulância, para que eles próprios e outros pacientes não sejam contaminados.

Com paciência, uma enfermeira e um auxiliar passam um pano em cada canto do veículo e uma solução com hipoclorito, enquanto o médico preenche a ficha do paciente. Só essa parte do trabalho pode levar até uma hora.

É na hora de se desparamentar que os profissionais têm maior atenção. E aí o momento em que há maior risco de contaminação. Muitos socorristas desconfiam já terem pegado a doença. "Eu acho que peguei", diz uma enfermeira. "Nunca vamos saber", rebate outro profissional.

Um médico afirma ainda que, sem os testes, a mesma pessoa pode acabar ficando de quarentena por mais de uma vez, desfalcando os quadros. Ele também lembra que, no modo como as coisas acontecem hoje, mortos têm prioridade nos testes em relação aos profissionais da ativa.

Recentemente, o governo afirmou que profissionais da saúde e segurança passarão por testes rápidos.

Quem está no front do Samu teme a doença pois sabe quão repentina pode ser a sua evolução. Os socorristas já tiveram uma morte entre os seus. O hematologista Paulo Fernando Moreira Palazzo, plantonista do Samu, morreu no início de abril, após duas semanas com sintomas de coronavírus. Pouco antes da morte, ele disse a amigos que estava bem.

Outras perdas para o serviço são os funcionários em grupo de risco, que estão afastados. A prefeitura tem feito contratações de médicos terceirizados, mas quem trabalha no Samu afirma que elas não são suficientes.

O serviço deveria ter 122 ambulâncias rodando diariamente, dizem. A estimativa dos funcionários é que mais de 40 fiquem paradas por falta de profissionais.

Em janeiro, a prefeitura ampliou a frota da cidade e prometeu que neste ano as 122 ambulâncias passariam a circular. O secretário da Saúde, Edson Aparecido, afirmou que, durante a epidemia, o Samu vêm tendo novos incrementos de equipes --recentemente, foram contratadas seis equipes leves e mais estão por vir.

Aparecido afirmou ainda que após a reorganização do sistema do Samu no ano passado, bastante criticada por socorristas por fechar bases móveis e colocá-las em equipamentos como hospitais, melhorou o sistema. "A reorganização está consolidada e o Samu integrado com o sistema de saúde", disse.

O medo dos socorristas é que o que é hoje um trabalho bastante sobrecarregado nos dias mais movimentados acabe virando o caos no pico da pandemia. Em especial, devido a paradas cardíacas, que necessitam das equipes avançadas com médicos. Aos fins de semana, segundo eles, são apenas três na cidade toda.

As equipes avançadas são fundamentais em casos extremos, que exigem reanimação de pacientes com paradas cardíacas ou que necessitem ser intubados.

Por outro lado, um dos gargalos que mais tomava o tempo desse tipo de ambulância com médicos era a exigência de atestar óbitos domiciliares --tarefa que ganharam durante a pandemia, antes feita pelo SVO (Serviço de Verificação de Óbitos). Segundo a Secretaria da Saúde, o número de ocorrências do tipo atendidas pelo serviço passou de 445 em fevereiro para 453 em março. Em abril, houve um salto para 632, um aumento de 40%.

Desde o dia 28, o órgão deixou de ter obrigação de atestar mortes e seis novas equipes da saúde passariam a para realizar o serviço de declarações de óbitos em domicílio.

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