Descrição de chapéu Pan-2019

Com trauma da Lava Jato, Peru faz Pan austero sob supervisão britânica

Assim como Brasil, país passou por turbulência pouco antes de evento esportivo

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Lima (Peru)

Imagine um país que, às vésperas de sediar o maior evento esportivo de sua história, mergulha em um escândalo de corrupção que derruba o presidente da República, arrasa a casta política e coloca todas as obras públicas sob suspeita.

Sede inédita dos Jogos Pan-Americanos, com início em 26 de julho, o Peru guarda tantas semelhanças com o Brasil que até o nome do responsável por detonar a crise é o mesmo: Operação Lava Jato.

Pressionada pela opinião pública e com a experiência do país vizinho, a organização do Pan de Lima se cercou de precauções contra acusações de corrupção e se sujeitou a controle externo de gastos por meio de um acordo de supervisão entre os governos peruano e britânico.

“Vejo o peruano buscando austeridade e transparência em todo o processo”, diz o mineiro Marcelo Wellisch, 39, gerente da equipe britânica do acordo Peru-Reino Unido.

Há dois anos em Lima e com seis grandes eventos na bagagem, Wellisch é um dos cerca de 150 brasileiros envolvidos na organização do Pan, a maioria com experiência em Copas do Mundo e Olimpíadas.

O contingente dos “ciganos olímpicos”, apelido usado pelos colegas peruanos, é formado principalmente por britânicos e brasileiros e tem como missão reproduzir os acertos e evitar os erros das organizações dos Jogos do Rio, em 2016, e de Londres, em 2012.

Nos quase seis anos de preparativos, o Peru atravessou um terremoto político.

Ollanta Humala, o presidente da época em que Lima foi escolhida para sediar o 18º Pan, em outubro de 2013, já passou pela cadeia e agora está com medidas restritivas enquanto se defende da acusação de ter recebido US$ 3 milhões (R$ 11,5 milhões) de caixa dois da Odebrecht.

Seu sucessor, Pedro Pablo Kuczynski, renunciou em março do ano passado e está em prisão domiciliar, também por envolvimento ilegal com a empreiteira brasileira. 

Outros dois ex-presidentes foram afetados pelo escândalo: Alan García se matou em abril no momento em que seria preso, e Alejandro Toledo fugiu para os Estados Unidos. 

A realização do Pan chegou a ficar ameaçada em março de 2017. Em meio a fortes chuvas que arrasaram a cidade de Piura, o Congresso chegou a discutir um projeto de lei para cancelar os Jogos, mas o governo nacional conseguiu desarmar a iniciativa.

À época, para blindar os Jogos Pan-Americanos, o Peru assinou acordo com o Reino Unido, com o objetivo, segundo a organização, de ter “uma gestão e execução eficiente, transparente, competitiva das licitações e dos concursos”.

O principal resultado do acordo tem sido a manutenção do orçamento sob controle. Diferentemente dos eventos no Brasil, onde a previsão inicial nunca foi cumprida, o Peru gastará menos do que se esperava, afirma o presidente da Comissão Organizadora dos Jogos Pan-Americanos de Lima, Carlos Neuhaus.

De início, explicou o dirigente à Folha, o custo foi estimado em 5 bilhões de soles (R$ 6 bilhões), mas a política de austeridade fez o orçamento, bancado pelo Tesouro peruano, cair para 4,2 bilhões de soles (cerca de R$ 5 bilhões). Além disso, há R$ 1,9 bilhão para obras viárias para aliviar o trânsito caótico de Lima.

Os cortes de custos incluíram eliminar um dos três centros poliesportivos planejados, mudar a sede do futebol para um estádio universitário e cancelar um projeto de R$ 400 milhões para construir uma raia de remo —o esporte agora deve ser disputado em uma lagoa a 100 km da cidade.

Sobre as licitações supervisionadas pelo acordo com os britânicos, Neuhaus diz que o Pan servirá de exemplo para as demais obras públicas:

“Na época da Lava Jato, para cada obra pública, se apresentava 1,8 postulante. Nós, para cada grande obra, tivemos mais de 40 propostas vindas de Turquia, França, Espanha, Brasil, China, Argentina, Chile, México, ou seja, é aberto.”

Lima escolhe bairro pobre para abrigar atletas na competição

Nada de Miraflores ou de outras áreas nobres e turísticas de Lima. Para abrigar os 8.570 atletas dos Jogos Pan-Americanos e Parapanamericanos, o governo peruano decidiu erguer sua vila esportiva em uma das zonas mais pobres e emblemáticas do país, a Villa El Salvador (VES).

Longe dos cartões-postais limenhos, nessa ampla zona periférica predominam casas e prédios baixos de tijolo aparente construídos sobre o deserto. É como se a Vila Olímpica dos Jogos do Rio-2016 estivesse localizada na Rocinha em vez da Barra da Tijuca.

O trânsito caótico é cheio de triciclos utilizados como mototáxis. O quase eterno céu nublado (chamado de “pança de burro” pelos locais) completa o ambiente de poucos matizes de cor.

A cerca de 25 km ao sul do centro, o distrito abriga quase 400 mil moradores, na maioria mestiços e quechuas, esta a principal etnia indígena do país. Começou a ser povoada no início dos anos 1970 em invasões e logo se tornou o principal símbolo da pobreza urbana peruana, a partir da chegada de milhares de andinos fugindo da guerra contra o Sendero Luminoso (1980-2000).

As sete torres que receberão os atletas, de 19 e 20 andares, foram erguidas em um terreno vazio do governo. O complexo, onde estão sendo colocadas 6.500 camas, incluirá também um ginásio poliesportivo para 5.038 pessoas —obras consideradas legados para o distrito.

Em fase de acabamento, a Vila Pan-Americana será menor do que o projeto original, que previa 39 torres de oito a dez andares. Após os eventos, os apartamentos serão vendidos pelo governo nacional.

Instalada a alguns metros da entrada do complexo, a vendedora ambulante Marlene Janampo, 28, diz que a construção melhorou a segurança ao espantar usuários de drogas que ficavam no antigo terreno baldio, mas afirma que quase nada foi feito de urbanização.

“Não tem semáforo para o colégio dos meus filhos e gostaria de ter áreas verdes”, diz Janampo, que vende doces diante da escola onde suas duas crianças estudam.

De acordo com Neuhaus, o custo menor e a falta de infraestrutura pesaram a favor da VES. Ele explica que, inicialmente, a ideia era construir um centro poliesportivo sobre o mar, em uma área nobre da cidade. O projeto foi abandonado devido aos riscos dessa construção e do seu orçamento alto.

“Na Villa El Salvador, me custou dois terços do que custaria o outro”, disse o executivo.

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