Imigrante prega harmonia em Copa para refugiados

Torneio reúne 16 equipes e terá final dia 20 de outubro, no Pacaembu, em SP

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São Paulo

Nas ruas estreitas da região da Praça da República, no centro de São Paulo, Braima Mané, 34, se movimenta com desenvoltura. Encontra vários conhecidos pelo caminho. Faz amigos com sua conversa fácil e fluente. 

"Se você anda por aqui, vai encontrar vários jogadores do torneio", afirma ele, enquanto passa pela rua 24 de maio, em frente a Galeria do Rock.

Por "jogadores" entenda-se imigrantes. Por "torneio" leia-se Copa dos Refugiados, competição em que ele é coordenador da edição de 2019. A final será dia 20, no Pacaembu, às 14h, com entrada gratuita.

As semifinais acontecem neste domingo (13), também a partir das 14 horas. Guiné-Bissau enfrenta o Congo e Gâmbia terá Níger como adversário. Os jogos serão no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa, na Vila Clementino, na zona sul da capital.

Imigrante da Guiné-Bissau e responsável pela Copa dos Refugiados, Braima Mané, 34 anos, na ONG África do Coração, no centro de São Paulo
Imigrante da Guiné-Bissau e responsável pela Copa dos Refugiados, Braima Mané, 34 anos, na ONG África do Coração, no centro de São Paulo - Karime Xavier / Folhapress

Nascido na Guiné-Bissau, país da África Ocidental com população de 1,6 milhão de habitantes, Braima chegou ao Brasil em 2009. Tem um filho de 1 ano e 7 meses nascido na capital paulista, chamado Munir Lionel.

Sim, Lionel é homenagem a Messi. "Sou muito fã dele como jogador e pessoa", afirma.
Desempregado há quase um ano, apesar de ser bacharel em direito, Braima se vira como dá para sustentar a família. Seu último emprego terminou em 2018 em um supermercado. Trabalhou no caixa e como atendente de balcão. Seu função atual é coordenar a Copa dos Refugiados, competição organizada pela ONG África do Coração.

"É difícil esse trabalho. É preciso ter flexibilidade e muita paciência, mais muita mesmo. Uma coisa é criticar, mas tem gente que falta com o respeito. Acham que estão jogando a Copa do Mundo, não a Copa dos Refugiados", reclama.

A edição de 2019 iniciou com a participação de equipes representando 16 países. 

Braima jogou a competição até 2017. Entrou no time de Guiné-Bissau em 2013 e se tornou capitão. Para ele, a Copa dos Refugiados é uma causa. A missão é aumentar a visibilidade de imigrantes e de seus problemas em uma cidade como São Paulo. Aprendeu na prática que onde existe futebol, aparece rivalidade.

"Sempre digo que devemos estar em harmonia. Quando você coloca futebol no meio, surge rivalidade.

Futebol causa essa contradição, né? Deveria unir as pessoas, mas gera diferenças", afirma.

Segundo ele, há participantes que pensam só em jogar, reclamar e não percebem o ideal maior que está por trás disso. "Tem de deixar de lado o que você quer e pensar nos outros", completa.

Entre as queixas de alguns jogadores estão que não existe premiação em dinheiro para a equipe campeã.

A ONG África do Coração diz não tem recursos para isso. O maior incômodo são insinuações de que ele recebe dinheiro para cuidar da competição.

"Eu estou desempregado, mas se estivesse trabalhando não poderia fazer essa coordenação da Copa. É algo que te consome", constata.

O objetivo do guineense é pelo menos conseguir viabilizar uma festa para o campeão. Tenta patrocínio para isso. A organização obteve fornecimento gratuito dos uniformes para todas as seleções, medalhas e troféu. O vencedor terá direito a ir ao Rio de Janeiro participar de uma etapa nacional contra vencedores de torneio semelhante em outros seis estados.

Além de patrocinadores, a ONG conseguiu firmar parcerias com a Prefeitura de São Paulo para o fornecimento de arbitragem, material e ambulância durante os jogos.

"Organizamos feira gastronômica com comidas de 20 países. Brigamos pela capacitação dos imigrantes. Tivemos curso de manipulação de alimentos. Fizemos palestras gratuitas para quem precisa de ajuda na documentação e pode regularizar a situação no Brasil. A gente precisa lutar pela integração", explica.

Braima coordena a Copa dos Refugiados, mas não é um deles. Seu pedido de reconhecimento foi negado pelo governo brasileiro. Não conseguiu provar merecer essa condição. Continuou no Brasil por causa de um processo iniciado pela Defensoria Pública de São Paulo. Ele já tinha tempo suficiente no país para obter visto de permanência. No próximo ano, planeja dar entrada no processo de cidadania.

A chegada foi com visto de estudante. Queria cursar direito e conseguiu, aos trancos e barrancos.

Conseguiu bolsa de estudo e completava as mensalidades trabalhando. Lavou carros em postos de gasolina, foi montador de móveis, virou barman e vendedor de roupas. Os colegas de classe da Unip, Anhanguera e FAM (as universidades em que passou) foram seus melhores clientes.

Por dois anos foi estagiário na AGU-SP (Advocacia Geral da União em São Paulo) e fez amigos que mantêm até hoje. Um deles pagou a passagem para que ele visitasse a família em Guiné-Bissau, na única vez que em que esteve na sua terra natal desde que desembarcou no Brasil. Tinha planejado fazer o mesmo neste ano. Será impossível.

"Tenho uma filha de 13 anos lá. Chama-se Iris Djassio. Terei de dizer a ela que não poderei ir, mas ainda não sei como", afirma.

Depois que começou a jogar pela equipe de Guiné-Bissau em São Paulo, foi uma das dez pessoas a ajudar na criação da ONG África do Coração para que imigrantes africanos, refugiados ou não, tivessem um ponto de encontro. Entre todos os fundadores da entidade, era Braima quem gostava de futebol e ficou encarregado de cuidar da parte esportiva.

Se as insinuações fossem verdadeiras e ele recebesse dinheiro para coordenar a Copa dos Refugiados, a remuneração viria a calhar. Braima Mané encontra um muro nas tentativas de se recolocar no mercado.

Diz que o diploma de bacharel em direito não lhe serve para abrir nenhuma porta. Conseguiu a vaga no supermercado porque um amigo seu conhecia uma funcionária do RH da empresa.

"Se tivesse de passar por entrevista e seleção, não teria sido contratado", afirma.

Essa é outra razão para a Copa dos Refugiados o motivar e irritar quase na mesma proporção. É uma oportunidade rara para a comunidade mostrar unidade e que merece ser vista com outros olhos.

"Os refugiados, os imigrantes deveriam ter mais oportunidades de trabalho porque são pessoas comprometidas. O imigrante é dedicado. Até porque não tem para onde ir. Se der errado, não tem pai ou mãe para socorrer. É uma luta não apenas por nós, mas pela geração que vai vir."

A geração que vai vir é Munir Lionel, seu filho que homenageia Lionel Messi.

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