Congolês foge da morte e cria Copa dos Refugiados no Brasil

Mais de 200 nacionalidades diferentes entraram no país neste século, segundo a PF

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São Paulo
O engenheiro civil Jean Katumba Mulondayi, 39, chegou ao Brasil como refugiado, saindo do Congo, há cinco anos; no terceiro mês no Brasil, criou com outros 20 refugiados uma associação, hoje formalizada e com sede própria
O engenheiro civil Jean Katumba Mulondayi, 39, chegou ao Brasil como refugiado, saindo do Congo, há cinco anos; no terceiro mês no Brasil, criou com outros 20 refugiados uma associação, hoje formalizada e com sede própria - Bruno Santos/Folhapress

País que recebeu ondas importantes de imigração nos séculos 19 e 20, o Brasil vive hoje uma realidade diferente.

Ainda é polo de atração e passagem, principalmente para latino-americanos e refugiados —parcela expressiva deles com alta qualificação—, devido a uma nova lei, que facilita a regularização dos estrangeiros.

Jean Katumba Mulondayi, 39, é um deles. Engenheiro civil, foi preso e torturado no Congo por motivos políticos e precisou fugir para escapar da morte —o conflito em seu país já deixou mais de 6 milhões de mortos e é considerado um dos mais sangrentos desde a Segunda Guerra Mundial.

Aqui, criou uma federação de imigrantes que procura combater o preconceito e ajudar os estrangeiros a tomar a iniciativa de reconstruírem sua vida.

“O que vemos neste século é uma imigração sem raízes, muito diferente da dos séculos passados, que põe em xeque a ideia de que o Brasil recebe bem os imigrantes. Reunir informação sobre eles é fundamental para construir políticas sociais.”
Rosana Baeninger, professora de demografia da Universidade Estadual de Campinas, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População e coordenadora do Observatório das Migrações em São Paulo

Na mão do engenheiro civil Jean Katumba Mulondayi estão marcas das torturas que recebeu no Congo, de onde fugiu para o Brasil
Na mão do engenheiro civil Jean Katumba Mulondayi estão marcas das torturas que recebeu no Congo, de onde fugiu para o Brasil - Bruno Santos/Folhapress

JEAN KATUMBA MULONDAYI, 39, engenheiro civil, do Congo

"O Brasil foi um país que caiu na minha frente e que me deu a chance de renovar minha vida. Se tivesse escolha, não escolheria o Brasil. Escolhi cinco países, o Brasil não fazia parte. Foi a indicação de um padre, para obter o visto para sair.

Vim sozinho. Só sabia que teria que pagar a hospedagem num hotel, procurar a Caritas e me declarar refugiado. Aí fui encaminhado para a Casa do Imigrante.

Lá fiquei seis meses. Fiz amigos com os quais tenho amizade até hoje. Não consegui trabalho logo, demorava muito para conseguir documentação.

Como eu tinha espírito de empreendedorismo, eu e um amigo abrimos uma lan house com ligação internacional, assim consegui me estabelecer. 

Na Casa do Imigrante, a maioria era gente que fez faculdade. Mas a gente não foi preparada para enfrentar o Brasil, por causa da língua.

Ficamos analisando nosso dia a dia aqui, como estava o Brasil, como ele era. E percebemos que havia muito preconceito. Você passava na rua e ouvia "Ei, haitiano!". Há muito desconhecimento.

Vamos fazer como? Precisamos nos identificar. Porque o Brasil tem raiz africana, mas ignora a presença dos africanos. Com um amigo do Camarões e outro da Guiné Bissau, decidimos montar uma associação unindo os 55 países da África sob uma bandeira só.

Em 2014 tinha a Copa do Mundo, e tivemos a ideia de organizar a Copa dos Refugiados. Não era "com refugiados", ou "para os refugiados", era a Copa "dos" refugiados. Teve um grande impacto, abriu portas, permitiu que as comunidades de imigrantes, refugiados e apátridas ganhassem voz e  livre-expressão da nossa dor.

Depois abrimos nossa associação para todos os estrangeiros. Não é mais África como continente, mas como berço da humanidade, de onde vem todos os seres humanos. Queremos levar a pauta dos refugiados ao poder público, pois muitas decisões que eles tomam não nos ouvem. Decretos, leis que votam, têm que nos ouvir também, pois a lei é para nós.

Também tentamos explicar a cultura brasileira para os que chegam, para que eles não tomem atitudes que acabam provocando estranhamento nos brasileiros e, com isso, reforçando o preconceito.

No trabalho, se um imigrante se comporta bem, seu patrão chama outro refugiado, você dá um passo para outro. Se faz algo errado, fecha a porta para os outros.

A vida no Brasil é como um jogo de futebol, não pode ser torcida, ficar gritando na torcida. Ninguém conhece o nome da torcida, mas dos jogadores todo mundo conhece, principalmente de quem faz o gol.

Ninguém nasce refugiado; a gente se torna refugiado para salvar nossa vida. Temos que entrar em campo e tratar de marcar gols. Queremos mostrar que somos capazes, trouxemos nossa bagagem e não queremos tirar o lugar dos outros. Podemos levantar o Brasil junto com os brasileiros. 

No Congo, trabalhei seis anos como engenheiro civil. Agora quero lidar com outra coisa que tenha um ideal. Hoje sou o Jean da federação, mas são muitos Jeans que estão chegando e não têm forças para falar, ninguém os conhece. São desaparecidos.

É deles que estou falando.

Quando terminar meu trabalho e puder voltar para meu país para cuidar da minha vida, deixo uma estrutura que vai ajudar os outros Jean que vão chegar em 2030, em 2040.

Estava construindo casas. Agora estou construindo caminhos, um ideal, uma luta.


247 milhões

de migrantes do mundo são responsáveis por 9,4% do PIB global (US$ 6,7 trilhões).

Se tivessem ficado em seus países, o PIB mundial seria US$ 3 trilhões menor, segundo o estudo  “People on the move: Global migration's impact and opportunity” (Pessoas em movimento: impactos e oportunidades da migração global), publicado pela consultoria McKinsey Global Institute em novembro de 2016



Atlas inédito detalha, cidade por cidade, a imigração deste século para o estado de São Paulo.

PRINCIPAIS TENDÊNCIAS

1) Novas origens: mais de 260 países foram citados por imigrantes que chegaram ao país entre 2000 e 2015

2) Novas mulherescresce o número de mulheres que deixam sozinhas seus países, para fugir de estupros ou de violência na família

3) Novas qualificaçõesimigrantes com diploma universitário são fatia crescente, principalmente entre latino-americanos

4) Nova interiorizaçãoleis facilitam obtenção de documentos de trabalho, e imigrantes não precisam mais ficar presos a trabalhos clandestinos na capital paulista

5) Nova legislação: Brasil aprova lei que facilita entrada de estrangeiros, mas faltam políticas que permitam integração eficiente e produtiva

6) Novas chances: filhos de imigrantes viram ponte entre seus pais e a língua e os costumes do novo país

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