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Em
dezembro, Macau passará a ser território administrado
pela China
(22/8/1999)
O
fim do Império Português
HERMANO VIANNA
Entre
todas as grandes comemorações previstas para os próximos
meses, da chegada do ano 2000 aos 500 anos do Brasil, uma outra
festa, que também poderia ter um significado profundo para
o nosso imaginário, está sendo esquecida. Macau, em
20 de dezembro de 1999, vai passar a ser um território administrado
pelos chineses. É ao mesmo tempo o alegre e melancólico
fim de um Império Português do qual já fizemos
parte e cujos sonhos e pesadelos marcaram decisivamente, queiramos
ou não, nossa maneira de estar no mundo.
Deveríamos aproveitar essa ocasião para organizar
grandes excursões educativas, de preferência gratuitas
(!), que levassem o maior número possível de brasileiros,
pobres ou ricos, de todos os tons de pele, para conhecer uma Macau
ainda controlada por portugueses. É a última oportunidade
para ter algumas experiências que iluminariam aspectos essenciais
da nossa identidade luso-qualquer-coisa, a começar pela estranhíssima
sensação de se sentir como que em casa num lugar tão
radicalmente diferente.
Pois são as diferenças que logo chamam a atenção
do brasileiro que pisa Macau pela primeira vez. Não as diferenças
mais óbvias e gritantes, advindas do fato de estarmos em
pleno Oriente, mas aquelas que mostram como séculos de colonialismo
português produziram realidades absolutamente contrastantes,
na América e na Ásia.
O Brasil, como todo estudante do primeiro grau já ouviu falar,
tem uma área de 8.547.403,5 km 2. Macau possui apenas 18,7
km 2.
Isto é, caberiam cerca de 450 mil Macaus no Brasil. Tamanho,
nesse caso, não é documento. A área reduzidíssima
da colônia asiática (que nunca chegou a ser "exatamente"
uma colônia, mas esse é outro problema) não
se traduziu em maior controle cultural, por exemplo. Apesar da vastidão
do território brasileiro, a colonização portuguesa
foi extremamente eficiente na imposição de uma única
língua mesmo em seus mais longínquos recantos e para
seus mais resistentes grupos étnicos de imigrantes. Em Macau,
cuja totalidade de sua área pode ser percorrida a pé
em poucas horas, apenas 3% a 4% da população fala
português.
Além disso, se acreditarmos no mito que nos ensina que o
melhor da aventura colonial portuguesa foi a mestiçagem (tanto
de "raças" quanto de culturas), veremos que nesse
assunto a disparidade entre o Brasil e Macau é certamente
perturbadora. O mundo português e o mundo chinês parecem
ter vivido todos esses séculos em coabitação,
mais ou menos pacífica, mas não em verdadeiro intercâmbio
que pudesse gerar uma mistura luso-chino-tropicalista realmente
disseminada.
Até a palavra "macaense" não tem a mesma
abrangência que o nosso "brasileiro". No seu uso
cotidiano, macaense não designa todas as pessoas que nascem
em Macau, mas sim os mestiços, filhos geralmente de portugueses
com asiáticas. Esses mestiços não chegam a
somar 15 mil pessoas, uma parcela muito pequena diante de uma população
total de cerca de meio milhão de habitantes.
Parece então que Macau é um fracasso dos ideais culturais
simultaneamente catequizadores e pró-mestiçagem do
Império lusitano. Parece que Portugal parou na porta da China,
não entendeu nada e agora vai embora sem deixar vestígios.
Porém quem visita Macau entende rapidamente que não
é bem esse o caso. Tudo ali se apresenta como uma prova de
que o colonialismo português não teve uma face monolítica
e soube adaptar-se espertamente às realidades específicas
que foi encontrando mundo afora.
A familiaridade que o brasileiro sente em Macau não vem apenas
de seus passeios sobre pedras portuguesas e da utilização
de sua língua "nativa" em nomes de lojas e placas
de ruas. Os macaenses, apesar de minoritários, souberam,
ao longo desses séculos todos, exercer uma sutil tarefa de
mediação transcultural que não tem paralelo
em Hong Kong (situada a uma hora de barco de Macau), território
que até recentemente tinha administração britânica.
Os macaenses, com sua habilidade mediadora, se tornaram peças-chaves
da "transição" para a administração
dos chineses e podem continuar a exercer uma grande influência
sempre sutil, quase sempre invisível -na vida econômica
e política da nova "região administrativa especial"
controlada por Pequim. Para isso já estão aparentemente
bem preparados. Há dois anos, conheci um macaense que possuía
três celulares, um de Macau, um de Hong Kong e outro da China.
Todos eles não paravam de tocar.
Se esse novo desafio mediador tiver bons resultados, a cultura macaense
permanecerá viva e talvez florescente em Macau. Seria uma
pena se ela desaparecesse. A culinária macaense (que pode
ser apreciada no restaurante "Porto Interior"), com seus
pratos híbridos luso-chino-indiano-malaio-africano-e-mesmo-brasileiros,
é fabulosa; a língua crioula local -mistura secular
de português, chinês e malaio, conhecida como papiá-
é encantadora; e o modo de vida inventado pelos macaenses
(descritos na literatura de Henrique de Senna Fernandes) é
um dos capítulos mais interessantes, apesar de pouco conhecido,
do encontro entre o Ocidente e o Oriente.
Pelo menos temos um consolo: mesmo que os macaenses desapareçam
inteiramente em Macau, sua peculiar cultura permanecerá sendo
cultivada na diáspora. Há décadas vem sendo
criada uma complexa rede de Casas de Macau, que reúne imigrantes
em cidades portuguesas, australianas, norte-americanas e inclusive
brasileiras. Há uma bem ativa Casa de Macau em São
Paulo.
Mas ninguém sabe ao certo o que vai acontecer com Macau depois
de 20 de dezembro. A Macau portuguesa, que nunca chegou a ser exatamente
portuguesa, poderá se tornar apenas uma lembrança
de macaenses e de viajantes, como eu, que um dia se sentiram lusitanamente
em casa andando pelas ruas de seus bairros mais tipicamente orientais.
Nunca vou me esquecer da noite em que entrei no clube "A Tribo",
situado num conjunto habitacional chinês, especializado em
música pop filipina, propriedade de um empresário
do Sri Lanka e frequentado por macaenses e africanos de língua
portuguesa que adoravam "dançar quizomba".
Também vai ficar para sempre em minha memória um passeio
pelo Jardim de Lou Lim Ieoc, o mais lindo e o mais chinês
da cidade, talvez do mundo, onde imitei o poeta português
Eugênio de Andrade: "Deste Jardim o que levo comigo/
é um ramo de bambu para servir/ de espelho para o resto dos
meus dias". Espelho que teima em refletir minha imagem como
que imersa num sonho psicodélico de Gilberto Freyre: aquele
que sugeria ser o Brasil uma "China Tropical". Sonho que,
como tudo o que escreveu o autor de "Casa-Grande e Senzala",
nos deixa em posição vantajosa: bem se sabe que a
China é o futuro do mundo (a língua mais falada no
planeta, por 885 milhões de pessoas, é o mandarim;
o inglês vem em segundo lugar, lá embaixo: 322 milhões
de falantes). Macau, com todos seus ramos de bambu, será
sempre não apenas um espelho revelador de nossos mais íntimos
e confusos anseios identitários, mas também nossa
melhor porta de entrada para estes tempos chineses que hão
de vir.
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