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'Cidadão Kane' inventou o cinema moderno ao ignorar convenções

O crítico Sérgio Augusto explica as inovações na obra-prima de Orson Welles

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Sérgio Augusto

[RESUMO] Eleito diversas vezes o melhor filme da história, "Cidadão Kane", de Orson Welles, mudou a história do cinema ao ignorar a cartilha e levar às telas recursos teatrais e radiofônicos para contar uma narrativa sobre a corrupção do poder, a imprensa sensacionalista, a solidão e também sobre a América e sua plutocracia. O jornalista Sérgio Augusto escreveu sobre esse clássico na Folha em 1991, quando "Cidadão Kane" completou 50 anos.

Um filme, dirigido por um jovem de apenas 25 anos de idade e nenhuma experiência profissional atrás de uma câmera, mudou a história do cinema. A 1º de maio de 1941, "Cidadão Kane" (Citizen Kane) estreou oficialmente no RKO Palace de Nova York e, logo em seguida, em 499 outras salas pelos EUA afora.

Era o filme mais aguardado do ano. Estavam todos curiosos para ver o que seu autor, Orson Welles (1915-1985), o enfant terrible do palco e do rádio que três anos antes agitara a América com uma aterrorizante radionovelização de "A Guerra do Mundos" , havia feito com a carta branca que Hollywood lhe dera. Nada modesto, Welles fez uma obra-prima. Para a maioria dos críticos de todo o mundo, a mais cintilante obra-prima cinematográfica de todos os tempos.

Nem todas as suas bossas eram originais. Já havia tetos baixos, profundidades de focos e tomadas frontais de luzes em alguns filmes de Ford e Wyler, ambos comparsas de Toland. Em "Kitty Foyle", uma produção da RKO de 1940, dirigida por Sam Wood, o pai da heroína também morria com um peso de papel igual ao de Kane na mão. Tamanha era a sensação de frescor provocada pela mise en scène de Welles, que a maioria dos espectadores acreditou estar vendo tudo aquilo pela primeira vez.

Por tudo isso é que se acredita que "Kane" não apenas inventou o cinema moderno, mas fez, ao mesmo tempo, uma espécie de balanço do que havia de melhor —ou mais potencialmente avançado— no cinema clássico.

"Kane" é o último grande baile do cinema antigo e o primeiro embalo de uma festa a que a Nouvelle Vague daria prosseguimento e que ainda não terminou.

Em 1932, o então roteirista Preston Sturges escreveu para William K. Howard o drama de um controvertido magnata, todo narrado em flashbacks. Termina aí o parentesco de "O Poder e a Glória" com "Kane". Estrelado por Spencer Tracy, "O Poder e a Glória" foi um precursor relapso, pois seus flashbacks se imbricavam de forma desajeitada. Sturges era um exímio articulador de intrigas, mas Howard, bem, Howard não era Welles, nem dispunha de um quadro de profissionais como o montado para a produção de "Kane".

Nenhum crítico teve a coragem de acusar Welles ou Mankiewicz de plagiário, mas já tentaram dar a Mankiewicz o que é acima de tudo de Welles; isto é, a autoria de "Kane". Há 20 anos, a controvertida crítica da revista The New Yorker, Pauline Kael, aproveitou um convite da editora Little & Brown para prefaciar a edição do roteiro completo de "Kane" e fez uma pesquisa sobre a gênese do filme. Ouviu meio mundo, menos a parte mais atingida pela sua fúria revisionista: Welles.

Kael garimpou muitos dados interessantes, mas sua tese tinha mais furos que um queijo suíço, que foram prontamente calafetados por críticos e historiadores, como Peter Bogdanovich, Andrew Sarris e Joseph McBride, e por membros da equipe de "Kane", como Bernard Herrmann e o ator George Coulouris, duas respeitáveis testemunhas da ascendência criativa de Welles.

Kael partiu de duas premissas equivocadas. Em primeiro lugar, não foi exclusivamente por seu roteiro que "Kane" adquiriu notoriedade. No mais, nunca minimizaram a importância de Mankiewicz ao filme, Welles respondeu. "Foi enorme". Como foi a de Toland, Fergunson, Herrmann, Wise, etc. "Kane" é uma obra de equipe, magistralmente regida por Welles, que, além de empunhar a batuta, ajudou a escrever a partitura e atuou como spalla.

Robert L. Carringer, autor de "The Making of Citizen Kane", editado há seis anos pela University of California Press, leu todos os tratamentos submetidos por Mankiewicz ao filme e concluiu: se não fosse por Welles, "Kane" teria sucumbido a uma quantidade ponderável de cenas mal alinhavadas, supérfluas e enfadonhas. Carringer também leu a adaptação de "Heart of Darkness", na qual várias novidades de "Kane" haviam sido esboçadas, e não deu falta de mais nada para encerrar a bizantina polêmica.

Eis algumas das cenas desprezadas por Welles: uma visita de Thatcher a Kane, num palácio renascentista de Roma, onde ele festejaria os seus 25 anos; a lua de mel de Kane e Emily, no interior de Wisconsin; um encontro casual de Kane com seu pai num teatro; a descoberta de um caso de Susan com um jovem, em Xanadu (Kane o mandava matar); o funeral do filho de Kane (morto a tiros quando participava de uma agitação promovida por jovens fascistas); e as idas frequentes de Kane e Leland ao restaurante Rector's e a um bordel de luxo.

Também caiu fora todo o episódio em que Kane, metido num escândalo de petróleo, ia conferenciar com o presidente dos EUA para depois o encurralar com editoriais, que terminam por induzir um fanático a tentar matar o presidente. Algo parecido ocorreu com Hearst e o presidente William McKinley, assassinado por um anarquista em 1901.

Perguntaram uma vez a Welles qual dos seus discípulos ele mais admirava. Stanley Kubrick foi sua resposta. "Sem Welles, não teria havido Kubrick", escreveu um crítico francês ao saudar o primeiro longa-metragem do cineasta.

Sem Welles, não teria havido muito mais gente. O legado de "Kane" palpita, e às vezes explode, nas obras de diretores tão díspares como o Ingmar Bergman de "Morangos Silvestres", o Fellini de "Oito e Meio", o Max Ophuls de "Coração Prisioneiro" e "Lola Montès", o Anthony Asquith de "A Mulher Falada", o Joseph L. Mankiewicz de "A Condessa Descalça", o Elia Kazan de "O Sindicato de Ladrões" e "Um Rosto da Multidão", o Fred Zinnemann de "Ato de Violência", o Nicholas Ray de "No Silêncio da Noite", o Robert Rossen de "A Grande Ilusão", o Robert Altman de "Nashville", o Woody Allen de "Zelig".

É interminável a lista dos filhos de "Kane" e o primeiro deles, até porque teve a oportunidade de trabalhar com o mestre, foi Robert Wise. Toda a cultuada série de fitas de horror que Val Lewton produziu na RKO, nos anos 40, roubou suas sombras ao neoexpressionismo wellesiano. Até no Brasil, Welles fez escola. E onde menos se poderia esperar. Antes mesmo de conhecê-lo, Carlos Manga refinou duas de suas chanchadas, "De Vento em Popa" e "O Homem de Sputnik", com rimas audiovisuais, pernósticas angulações de câmera e outros macetes de "Kane".

Rosebud. Nenhuma outra palavra celebrizada pelo cinema lhe faz sombra. Kane a pronuncia em seu leito de morte, induzido à hipótese de que ela encerra um enigma. Nenhuma das pessoas intimamente ligadas a Kane, nem sequer sua última mulher, Susan, tem a mais remota ideia do que ela significa; nunca ouviram Kane pronunciá-la. Raymond, o mordomo, ouviu, uma só vez. Foi no dia em que Susan abandonou Xanadu e seu patrão, furibundo, quebrou toda a mobília do quarto dela e vagou, abúlico, por um dos corredores de castelo.

O velho Bernstein tinha razão: Rosebud era algo que Kane havia perdido. Mas não era Susan. Ela, porém, ouvira parte do segredo. Ao cruzar com Susan pela primeira vez, Kane lhe disse ter ido "em busca de sua juventude". Ele acabara de fazer uma "viagem sentimental" por um depósito de bugigangas que pertencera à sua mãe e lá deve ter reencontrado o trenó, o ponto focal de sua nostalgia pela única época de pureza em sua vida. O próprio Kane acreditava que o excesso de dinheiro o destruiria. "Eu poderia ter sido um grande homem se não tivesse enriquecido."

O magnata Kane olha para frente e apenas os seus olhos estão iluminados. Seu olhar é de profunda angústia.
Cena do filme "Cidadão Kane (1941) , do diretor norte-americano, Orson Welles - Reprodução

Nas duas únicas vezes em que pronuncia a palavra-fetiche, Kane tem nas mãos a sua madeleine: um peso de papel que reproduz em seu cristalino interior uma paisagem que lhe recorda os invernos de sua infância, no interior do Colorado. A visão da neve caindo, dentro do peso de papel, o remete ao trenó, marca "Rosebud", seu brinquedo favorito —e sua arma de defesa contra o banqueiro Thatcher, quando este vai buscá-lo em Little Salem. Dado o carinho com que sua mãe recolhe o trenó, mais de um crítico o identificou como um símbolo do amor materno perdido.

Welles não estava brincando quando definiu Rosebud como um artifício (para amarrar os múltiplos flashbacks do filme) sujeito a interpretação subfreudianas ("É um truque na verdade, um toque de Freud"). O enigma de Édipo também era uma artifício e acabou vítima dos mesmo flagelos. A tragédia de Kane, como a tragédia de Édipo, é uma intriga policial com aspirações metafísicas.

A psicanálise começara a grassar em Hollywood quando Mankiewicz teve o estalo de 'Rosebud'. Um dia, cansado de ouvir bobagens a respeito de seu significado mais "profundo", inventou para ela uma origem que nada tinha a ver com inocência perdida. Segundo Mankiewicz, 'Rosebud' era como Hearst gostava de se referir ao clitóris de sua amante, Marion Davies.

A imagem do rosto de uma mulher loira é sobreposta a capa de um jornal
Cena do filme "Cidadão Kane", do diretor norte-americano, Orson Welles - Reprodução

Muitos anos depois, Joseph L. Mankiewicz , irmão mais novo de Herman, revelaria ao crítico Andrew Sarris que "rosebud", na verdade, era a marca de uma bicicleta que roubaram de seu irmão, quando ele tinha cinco anos de idade. Desse episódio traumático, Herman nunca se esqueceu. Sempre que enchia a cara, Herman resmungava. "Rosebud... Rosebud.".

Welles preferia algo mais intelectual e pomposo na esfinge de "Kane": à beira da morte, Kane contemplaria a neve do peso de papel e citaria um trecho de algum poema, provavelmente aquele em que o poeta romântico inglês Coleridge fala de um "mundo de vidro" e em "pétala de rosa" (em inglês, 'rosebud'). Mas a ideia de Mankiewicz se impôs com facilidade.

Também somente duas vezes o trenó aparece em cena. No final, ele submerge sob um manto de neve; no final da segunda, arde um incinerador. Pureza e purgação. O enigma de "Kane" tem a forma de um botão de rosa, mas lembra uma chama, o que não deve ser coincidência num filme tão cheio de segredos e simetrais.

Chama, fogo, luz — em vários momento de "Kane" estes elementos, que sugerem purificação, destruição e revelação, ajudam a iluminar a esfinge.

A primeira luz vem do quarto onde Kane está dando os seus últimos suspiros; a segunda, explosiva, do peso de papel que se espatifa no chão quando Kane morre; a terceira, a cabine de projeção onde um grupo repórteres assiste à exibição de um cinejornal sobre a vida de Kane. Um raio flameja o céu quando a grua de Roland invade a claraboia do clube noturno que Susan abriu depois de largar Kane. Uma lâmpada pifa quando Susan sucumbe ao supremo agudo de sua área, que, por sinal, alude a "um fogo fatal" 1tanto quanto o que consome a mariposa mencionada na canção "It can't be love", que um blueseiro negro interpreta durante o piquenique de Kane e Susan. Ao definir seus planos para o Inquirer, Kane diz que precisa transformá-lo em algo tão importante para a cidade quanto o gás do lampião que o ilumina. Ao fornecer a primeira pista sobre "rosebud", Bernstein está ao lado de uma lareira.

Xanadu foi outra palavra que Kane gravou na memória dos que não se lembravam do castelo do imperador mongol Kubla Khan e descponheciam o poema que Coleridge lhe dedicou. A primeira estrofe do poema ("Em Xanadu, Kubla ergueu um faustoso palácio...") é citada no filme por escrito. Coleridge o concedeu depois de um sonho, quase duzentos anos atrás. Khan também mandou construir o seu Xanadu depois de sonhar com o projeto de um palácio. A partir dessa simetria, Jorge Luis Borges acenou com a hipótese de outros sonhos criativos alimentado pela leitura de "Kubla Khan". Terá Welles sonhado com o poema de Coleridge? Ou teria sido de Mankiewicz a ideia de ligar Kane a Khan?

Welles negou que o protótipo de seu Xanadu tenha sido o castelo da Branca de Neve. Tal inconfidência foi feita por um dos integrantes da magnífica equipe de cenógrafos comandada por Perry Fergunson. Desenhado por Mario Larringa, o Xanadu de Welles é uma mistura de épocas e estilos tão variada quanto as obras de arte do acervo de Kane. Há traços (pouco, é verdade) de San Simeon, e do castelo do monte Saint-Michel, na França; a torre do lado direito lembra o campanário da catedral de São Marco, em Veneza; suas arcadas imitam as do palácio Pitti, em Florença; toques góticos de origem inglesa dividem o kitsch interior com o medievo italiano.

O ecletismo estilístico de Xanadu denota uma voracidade perfeitamente afinada com a volúpia com que seu proprietário tentou devorar o mundo, as criações humanas — e até mesmo o reino animal, a partir do dia em que incrustou em seus domínio o maio zoo particular do planeta.


Sérgio Augusto é escritor e crítico de cinema, publicou a antologia “Vai Começar a Sessão” (ed.Objetiva) que reúne seus ensaios críticos

A íntegra deste texto foi originalmente publicada na Folha em 27 de abril de 1991.

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