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Seção de psicanálise de Virgínia Bicudo foi pioneira entre os grandes jornais do Brasil

Socióloga paulistana que desenvolveu estudos sobre teorias freudianas e preconceito racial, ela teve coluna na Folha da Manhã em 1954

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São Paulo

Foi no trânsito contínuo entre sociologia e psicanálise que a paulistana Virgínia Leone Bicudo (1910-2003) se tornou personagem histórica de pioneirismos múltiplos.

Na Escola Livre de Sociologia e Política, Virgínia foi a única mulher a obter o bacharelado em 1938 e defendeu uma das primeiras teses de que se tem notícia sobre questões raciais no Brasil. Como psicanalista, integrou o grupo de estudos que deu origem à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e ajudou a consolidar esse campo no país.

Virgínia se tornou, assim, a primeira pessoa não formada em medicina a ser reconhecida como psicanalista no Brasil, após anos estudando com Durval Marcondes, um dos precursores do movimento psicanalítico no país.

Em uma época em que a maior parte da população negra no Brasil era privada de acesso à educação formal, Virgínia, “apesar de todas as condicionantes, do profundo racismo e do machismo, conseguiu passar por essas brechas e fazer coisas extraordinárias”, afirma o pesquisador Marcell Machado dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

"Se havia pioneirismo, a Virgínia Bicudo estava lá", diz Santos.

retrato em preto e branco de jovem mulher negra trajando terno e lenço enrolado no pescoço
A socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo foi a primeira não-médica reconhecida como psicanalista no Brasil - Arquivo SBPSP

Era filha de Giovanna Leone, imigrante italiana, e de Theofilo Júlio Bicudo, negro nascido livre em 1888 e que, excelente aluno, almejava se tornar médico. Mas foi impedido por um professor racista da Faculdade de Medicina da USP.

Theofilo era um homem progressista, que queria participar ativamente da sociedade. E "foi na figura da filha que este seu ideal acabou por se concretizar", escreve Janaína Damaceno, professora do departamento de educação da UERJ e especialista na obra de Virgínia.

A trajetória intelectual de Virgínia se consolidou quando se formou na tradicional Escola Normal Caetano de Campos. No ensino superior, optou pelas ciências sociais. Se o problema era o racismo, "eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito", disse à Folha em 1994, quando tinha 80 anos.

Mas, "no segundo ano do curso, com a professora Noemy Silveira", continua Virgínia, "tive contato com a psicologia social. Comecei a ler e ali encontrei a psicologia do inconsciente de Sigmund Freud. Aí disse: 'É isso que estou procurando.'"

Em sua sociologia, muito da psicanálise —sua tese, "Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo" a todo tempo considera noções como subjetividade e inconsciente. Em sua psicanálise, muito da sociologia, quando procura "mostrar como o preconceito racial opera na vida psíquica das pessoas", escreve Damaceno.

Embora imersa em campos densos, Virgínia cultivava um “sentido de missão”, como Santos descreve, de levar a psicanálise ao debate público e traduzir suas noções para leigos. Foi nessa toada que surgiu a coluna Nosso Mundo Mental, série de 22 textos que a intelectual produziu para a Folha da Manhã em 1954.

mulher idosa sentada veste casaco preto e vestido azul, ela usa um lenço estampado amarrado nos cabelos e olha para o lado sorrindo
A socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo - Arquivo SBPSP

Originalmente uma radionovela transmitida pela Excelsior em 1950, que fez muito sucesso, sua versão em coluna trazia discussões relacionadas à maternidade e à educação de crianças, além de outros assuntos como amor, sonhos, ciúmes e medos. Aqui também outro pioneirismo de Virgínia: sua coluna foi a primeira sobre psicanálise em um grande jornal brasileiro.

A psicanalista Regina Lacorte Gianesi, coordenadora do Centro de Documentação e Memória da SBPSP, conta que a preocupação de Virgínia era divulgar conhecimentos básicos que auxiliassem pais e educadores a compreender as necessidades emocionais das crianças.

E, para esse fim, Virgínia “era dotada de uma notória capacidade de comunicação e se dedicava com paixão e energia, próprias de sua personalidade, à divulgação nos meios de comunicação das ideias psicanalíticas", afirma.

À época dono da empresa Folha da Manhã e da Rádio Excelsior, além de entusiasta da psicanálise, José Nabantino Ramos foi quem idealizou, ao lado de Virgínia, tanto a radionovela quanto a coluna. Por essas e outras contribuições ao campo, ele recebeu em 1967 o título de sócio benemérito da SBPSP, instituição que completa 70 anos em 2021.

A coluna Nosso Mundo Mental foi anunciada de forma a criar grande expectativa: quase todos os dias, ao longo das semanas que antecederam a estreia da seção, a Folha da Manhã publicou em sua capa um quadrinho ilustrado com dicas para pais, mães e professores a respeito da "higiene mental” (termo da época) de crianças.

Ela continuou colaborando com o jornal com textos esparsos até a década de 1970.

Em 1955, Virgínia deixou o Brasil para estudar psicanálise infantil em Londres, onde se aproximou de nomes importantes da área, como Melanie Klein. De volta ao Brasil na década de 1960, foi para Brasília que seus olhos se voltaram. “Ela acreditava que a psicanálise devia estar onde estava o poder”, conta Santos.

mulher parda usa vestido elegante e está de braço dado com homem branco de terno; os dois estão sorrindo e rodeados de pessoas em um elegante saguão
Virgínia Bicudo com Juscelino Kubitschek na Embaixada do Brasil em Londres, nos anos 1950 - Centro de Documentação e Memória da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Na capital do país, Virgínia atendeu políticos, como Eduardo Suplicy, segundo Damaceno, e foi uma das fundadoras da Sociedade de Psicanálise de Brasília.

Para Gianesi, Virgínia “tinha muito rigor, tinha que ter” pelos cargos de responsabilidade que ocupava, “mas era um rigor amoroso”, diz. “Era, sem dúvida, uma mulher de vanguarda.”

Raio X

Virgínia Leone Bicudo (1910-2003)

Nascida no bairro da Luz, em São Paulo (SP), formou-se em sociologia na Escola Livre de Sociologia e Política, em 1938. Na psicanálise, estudou com Durval Marcondes, um dos precursores desse área no Brasil e integrou o grupo que originou a Sociedade Brasileira de Psicanalise de São Paulo. Na Folha da Manhã, publicou em 1954 a série de textos na seção Nosso Mundo Mental, que discutia questões de psicanálise no cotidiano.

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