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Britânico transforma fazenda do bisavô no RJ em reserva de mata atlântica

Reserva Ecológica de Guapiaçu (Regua) já plantou mais de 800 mil árvores nativas para restaurar áreas degradadas e virou polo de educação ambiental e ecoturismo em Cachoeiras de Macacu

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A Reserva Ecológica de Guapiaçu, localizada no municipio de Cachoeiras de Macacu (RJ), em imagem de drone - Bruno Santos / Folhapress

Cachoeiras de Macacu (RJ)

Florestas que viram pastos e que, décadas depois, voltam a ser florestas. Caçadores treinados como guardas florestais para proteger os animais que antes eram alvo de suas espingardas. Uma área natural alagada substituída por plantações e pastagens, que é recriada e volta a ser o habitat de jacarés, lontras e capivaras.

A trajetória da Reserva Ecológica de Guapiaçu (Regua), no interior do Rio de Janeiro, é um exemplo do poder de transformação do ser humano sobre a natureza — seja para destruí-la, seja para conservá-la.

Localizada a 100 km da capital fluminense, no município de Cachoeiras de Macacu, a unidade de conservação ambiental foi fundada em uma propriedade de criação de gado, a Fazenda do Carmo, que pertencia a uma família anglo-brasileira desde 1907.

Na década de 1990, um dos herdeiros das terras tomou a decisão de conservar a mata que restava e recuperar paisagens naturais degradadas. Nascido e criado no Reino Unido, Nicholas Locke, 64, veio para o Brasil aos 19 anos fazer um estágio nas terras do tio, formou-se como técnico agrícola e, aos 22, decidiu ficar de vez.

Em 2001, ele e a esposa, a argentina Raquel Locke, 61, fundaram a ONG Associação Reserva Ecológica de Guapiaçu, voltada para a preservação da mata atlântica da bacia do rio de mesmo nome.

"Meu pai herdou uma parte dessa propriedade e ele se preocupava muito com a permanência das florestas. Eu também sempre quis cuidar desse patrimônio verde e tinha uma condição financeira que me permitiu dedicar tempo a aprender como se gere uma unidade de conservação. Então eu fiz isso", afirma Nicholas.

A Regua tem hoje 8.000 hectares, com mais de 700 espécies de árvores e 500 espécies de aves, que atraem observadores de pássaros do mundo todo. Mais da metade desse terreno ficava em propriedades vizinhas à fazenda, que foram adquiridas pela reserva para ampliar sua área de preservação.

Recriar florestas

O esforço de recuperação ambiental da Regua começou nos alagados, uma área inundada e de brejo típica da região, que havia sido descaracterizada pela retificação de rios e pela destinação para a agropecuária. Hoje, com a volta do espelho d’água e da floresta ao redor, a área se tornou um símbolo da reserva.

"Foi uma transformação incrível, de um ecossistema que havia sido perdido nos anos 70 e que retornou, trazendo todas as formas de vida", afirma Raquel Locke, vice-presidente da Regua.

Nos últimos 20 anos, com o financiamento de parceiros brasileiros e internacionais, a reserva restaurou 520 hectares de mata (o equivalente a 520 campos de futebol), com o plantio de mais de 800 mil árvores nativas. As mudas vêm de um viveiro próprio, que produz 100 mil delas por ano, de mais de 200 espécies.

A recriação das florestas é possível graças a técnicas de restauração ecológica, que incluem o preparo do solo, a escolha de árvores nativas que cumprem diferentes funções, o plantio e a manutenção. "É um trabalho minucioso, que requer muita ciência para que aquele ecossistema fique o mais próximo possível do original", afirma a engenheira florestal Aline Damasceno de Azevedo.

A vegetação puxa um processo de sucessão ecológica, com a produção de flores e frutos e a chegada de insetos, roedores e de grandes animais.

Segundo o biólogo Manoel Muanis, pesquisador da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que faz pesquisa na Regua há três anos, pequenos mamíferos vêm respondendo bem à restauração, colonizando rapidamente a área reflorestada.

Entre os animais maiores, um exemplo icônico é o das antas. Extintas no estado do Rio, elas foram reintroduzidas na reserva pelo projeto Refauna a partir de 2017 e já tiveram filhotes nascidos em liberdade.

"A floresta não é simplesmente uma camada de tinta verde pintada em um fundo. Ela realmente é vida. São centenas de milhares de processos individuais que estão ocorrendo ao redor dela, dos quais a gente nem tem consciência", diz Nicholas.

Imagens captadas por guarda-parques e por câmeras instaladas na mata já registraram pumas, muriquis e tamanduás circulando por ali.

Muriqui, maior primata das Américas, avistado na Reserva Ecológica de Guapiaçu (Regua)
Muriqui, maior primata das Américas, avistado na Reserva Ecológica de Guapiaçu (Regua) - Acervo Regua

Para inibir a caça, um problema antigo na região, o casal Locke lançou mão de uma estratégia inusitada: contratar ex-caçadores para atuarem como guarda-parques. "O caçador gosta de andar na mata. Ele é observador, conhece a floresta. Quando é capacitado para proteger, ele se sente extremamente responsável por aquele território", diz Nicholas.

Um desses guarda-parques encontrou recentemente uma espécie inédita de árvore frutífera da mata atlântica. Registrada com o nome científico de Eugenia guapiassuana, é uma árvore de grande porte, com grandes flores rosadas e frutos vermelhos que lhe renderam o nome popular de cereja-de-guapiaçu. A descoberta foi descrita por pesquisadores brasileiros no Kew Bulletin, revista científica da área de botânica, em março de 2024.

Ecoturismo, pesquisa e educação

A calmaria da floresta contrasta com a movimentação na sede da Regua. Pesquisadores, voluntários de ONGs internacionais, turistas e ônibus escolares cheios de crianças circulam constantemente por ali.

A construção de laços com a população local foi um processo que levou tempo. "Lá no começo, recebíamos muitos apoiadores, geralmente estrangeiros, e havia uma desconfiança sobre quem éramos e o que estávamos fazendo aqui", conta Micaela Locke, 32, filha de Nicholas e Raquel e coordenadora de projetos da reserva. "Hoje, entendemos melhor as necessidades das comunidades do entorno e tentamos atraí-las para o nosso ambiente e a nossa rotina, com eventos, cursos, passeios de bicicleta e ações de educação ambiental."

Além de trilhas sinalizadas, o terreno tem auditório, refeitório, alojamento para visitantes e uma pousada para adeptos do turismo ecológico.

Parte do terreno é classificado como RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural) — uma modalidade de unidade de conservação dentro de terrenos privados, na qual a terra segue pertencendo a um dono, mas ganha status de área protegida permanente. Segundo a Confederação Nacional de RPPN, existem 1.877 reservas desse tipo no país, ocupando um total de 836.522 hectares, sendo que mais de 70% delas ficam no bioma mata atlântica.

Com 80% da vegetação remanescente dentro de propriedades privadas, a mata atlântica é o bioma mais degradado do país e foi considerado pela ONU um ecossistema prioritário para restauração florestal no planeta.

Ao menos 100 mil hectares de mata atlântica já foram restaurados no Brasil, a maioria na região Sudeste. O dado se refere a áreas declaradas espontaneamente ao Pacto pela Restauração da Mata Atlântica e ao Observatório da Restauração e Reflorestamento, uma plataforma da Coalizão Brasil.

"Temos certeza de que é só uma pequena parcela do que de fato acontece. É uma amostragem, mas são os dados que temos e que, além disso, passam por um processo de validação", afirma Tainah Godoy, secretária-executiva do Observatório. "De qualquer forma, é muito aquém do que a gente precisa", completa.

A meta para a restauração no Brasil, estabelecida no Acordo de Paris de 2015, é de 12 milhões de hectares até 2030. Segundo Godoy, a restauração vem sendo liderada, no país, por organizações da sociedade civil, que captam recursos para recuperar áreas degradadas.

Recentemente, aponta ela, o boom das iniciativas de créditos de carbono trouxe escala ao processo, atraindo mais financiamento de empresas que buscam compensar suas emissões —por necessidade legal ou por metas verdes institucionais.

Reconstruir uma floresta em um solo exaurido pela exploração de séculos é, em geral, um processo caro. Mas, além dos benefícios sócio-ambientais, de mitigação do efeito estufa, maior segurança hídrica e preservação da biodiversidade, a restauração pode trazer ganhos financeiros aos produtores rurais que compensam o investimento, defende a ONG SOS Mata Atlântica.

Um estudo publicado em janeiro mostrou um aumento da produtividade em fazendas de café que fizeram restauração, chegando a uma cobertura de vegetação nativa de 25% de sua área.

"Isso aqui foi uma fazenda muito produtiva, e até hoje sou agricultor, tenho minha propriedade. Mas estamos em uma época histórica, em que temos que colocar mais valor na preservação", afirma Nicholas Locke. "Se a gente não tiver um mundo para viver, não adianta termos muitas riquezas. Cada município deveria ter sua própria reserva ecológica."

A causa "Mata Atlântica: Regenerar e Preservar" tem o apoio da Fundação SOS Mata Atlântica.

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