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Tendências e Debates: A Sucessão e o Percurso
[Artigo publicado em 16 de setembro de 1977]

Neste texto foi mantida a grafia original da época



FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Nos últimos dois meses, especialmente depois que houve a declaração oficial de que a sucessão só deveria ser tratada a partir de janeiro, a imprensa discute com insistência sobre quem sucederá o General Geisel. Bom sinal. Isso mostra que é difícil "mexicanizar" a sucessão presidencial brasileira. Lá, como é sabido, mantém-se o sigilo sobre o sucessor. Com isso aumentam as intrigas palacianas e a força dos boatos vindos dos áulicos até que o presidente "destapa el tapado" e dá a conhecer o nome de quem exercerá o mando supremo nos anos sucessivos.

Há diferenças neste aspecto entre a "democracia relativa" que impera aqui e a que viceja noutras bandas. A nossa assenta na fragilidade de tradições de sigilo burocrático que nasceram ontem e contrasta com a ânsia nacional de participação e de discussão às claras sobre os objetivos políticos nacionais e sobre o percurso para chegar a eles.

Além deste auspicioso sinal de inconformismo com as regras não escritas sobre quem decidirá sobre quem nos governará, existe pouco para alimentar as esperanças. Os candidatos estão pondo as cartas na mesa. Em nome do quê e por quê? Aquele a quem se atribui a qualidade de delfim é apresentado como se fosse a porta escondida que levará à ante-sala da democracia constitucional. Por quê? Chefe da "comunidade de informações", como se chama a la americana o sistema de órgãos de vigilância do Estado, o diretor do SNI talvez saiba mais do que ninguém que as várias camadas da população querem democracia e ordem constitucional. A Carta aos Brasileiros do prof. Goffredo da Silva Telles expressa a consciência liberal no que ela tem de construtivo: pede democracia e ponto. Afirmações reiteradas de empresários, que antes pareciam provir de vozes isoladas, ganharam representatividade com a sondagem de opinião que a "Gazeta Mercantil" realizou entre 5 mil empresários: foram escolhidos como líderes os empresários que mais pedem a redemocratização. Os intelectuais e os estudantes, as Igrejas e os líderes populares há muito pedem o Estado de Direito.

Mas por que teria de ser ungido para o percurso democratizante justamente o chefe da comunidade de informações? Acaso tal posição -instrumental por excelência- não envolve o risco de transformar em partido ou facção o sistema de órgãos que deve ser isento para dar maior segurança ao Estado? Na própria Rússia Soviética, depois da morte de Stalin, o primeiro cuidado dos que lutaram pelo menos por uma "democracia relativíssima", simbolizada pela substituição do ditador por um colegiado, foi o de afastar as pretensões de Beria. Na Alemanha nazista o Estado-Maior sempre se opôs a que os serviços especiais aumentassem sua força política. Por que deveríamos no Brasil -embora mal comparando- correr o risco de fazer o percurso da redemocratização com o receio de que a batuta esteja nas mãos de alguém que pelo uso do cachimbo tenha entortado a boca? Esta consideração não afasta, em princípio, a possibilidade de um percurso relativamente suave conduzido pelo general que, por dever de oficio, deve conhecer as aspirações nacionais. Mas a ordem das coisas teria de ser invertida: primeiro a Constituição; os gestos claros e generosos do restabelecimento do Estado de Direito; as reformas com o pluripartidarismo e tudo o mais. Depois, a fé publicamente expressa para receber o cetro das mãos do presidente, com o voto dos cidadãos. Há outros candidatos. Um, militarmente mais forte, é o chefe do Exército. Também neste caso, existe o risco de transformar em partido a mais vital das instituições nacionais para assegurar a ordem constitucional futura (ou não se trataria mais disso?). Pior ainda: haveria o risco de transformar os que deveriam simbolizar a ordem legal em partido contra os civis, posto que estes -pelo que se ouve e vê- estão demonstrando cansaço pela existência de uma ordem política que os exclui das responsabilidades pátrias. A desambição reiteradamente proclamada dos chefes militares provavelmente os levará a medir os riscos: quem ganharia com uma luta entre a "comunidade de informações" e a tropa ou entre militares e civis? Alguns ambiciosos que por trás dos candidatos procuram pescar em águas turvas e mais ninguém -ou melhor, mais ninguém, se estivermos pensando realmente no futuro do Brasil.

Mesmo o candidato civil, único aliás que assumiu ostensivamente a feição política de quem pretende algo, que nos mostra como garantia para a redemocratização? Pouco mais do que uma espécie de currículo no qual falta o exercício do primeiro posto da hierarquia política. Mas exercê-lo para quê e para quem? Não nos explica sequer como poderá um civil chefiar com força um regime de transição no qual, quer queiramos quer não, caberá aos militares papel de destaque. No passado, havia os partidos que, bem ou mal, articulavam interesses e, embora caoticamente, expressavam opções nuançadas. E existiam os "programas de governo". E agora? Será que não existem opções nacionais em jogo, será que tudo no futuro se reduzirá à administração de escolhas que já foram feitas pelo atual governo?

Por aí se vê que as lideranças ainda não entenderam que temos pela frente mais do que um impasse político conjuntural: temos opções econômicas e sociais que tomar. E para tomá-las democraticamente é preciso articulá-las como temas para o debate, é preciso ouvir os formadores de opinião, é preciso interessar os partidos e é preciso não esquecer que o cansaço presente não é só quanto à forma do regime, é também quanto à substância de algumas das principais políticas.

No plano institucional certas questões têm sido afloradas pelo debate: a do pluripartidarismo, a do sistema representativo (voto distrital, voto de legenda, sistema misto, voto proporcional etc.), a da competência do Executivo e do Legislativo etc. Que pensam os candidatos a candidato de tudo isto? No plano econômico mais geral há pelo menos dois temas que requerem definição clara dos postulantes ao cargo: o da dependência de nossa economia (com as opções implícitas sobre a transferência de tecnologia, sobre a política energética, sobre a dívida externa etc.) e o da relação entre os setores produtivos (estatal, multinacional e privado local). Na esfera social a discussão sobre a concentração da renda e a política salarial (com seus pressupostos fundamentais, como a questão das formas e do uso da propriedade, e com suas consequências óbvias, como a da relação entre política salarial e inflação) requer também definição dos candidatos e dos líderes nacionais. Por fim, o tema da participação social e política que inclui a discussão do sistema partidário, mas não se esgota nela, continua ausente da "grande política".

Em síntese, independência nacional, redistribuição de riqueza (regional e por camadas da população) e participação das várias camadas da população na vida brasileira constituem as áreas de incerteza que deveriam ser objeto de análise e de posicionamento por parte dos que aspiram a conduzir o País para um futuro de dignidade, de liberdade, de prosperidade e de justiça social.

Se ao invés de enfrentar as questões substantivas os candidatos a candidato e os líderes políticos persistirem em marcar prazos irrealistas para o começo do debate e continuarem a circunscrever a discussão à questão dos nomes da preferência de cada grupo, como pedir com coerência que a opinião pública se satisfaça e que a massa dos eleitores que não votam eleve seu nível de informação e de consciência política? Sem um debate a fundo das questões brasileiras, os diálogos e as manobras propagandísticas nada mais fazem do que jogar facções contra facções dentro e fora das Forças Armadas e jogar a opinião pública contra todas elas, em detrimento do Brasil.

Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, professor da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, ex-professor da Universidade de Paris e do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, nos EUA, autor de diversas publicações e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

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    A Sucessão e o Percurso, por Fernando Henrique Cardoso


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