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Artigo: Qualquer semelhança não é mera coincidência [publicado em 25 de março de 1990] DA REDAÇÃO Um líder determinado, que impressiona pela autoconfiança e pela capacidade de comunicação de massa, chega ao poder aos 39 anos depois de uma carreira política fulminante. Combatido pela esquerda, criticado pela imprensa liberal e pelos intelectuais, ele se apóia nos setores mais pobres e desorganizados da sociedade, a quem promete uma era de estabilidade e riqueza, tão logo tenha restabelecido a autoridade do governo e a dignidade nacional. Sua personalidade tumultuária é apresentada, pela máquina de propaganda que ajudou a levá-lo ao poder, como indício da vitalidade e da energia necessárias para praticar as mudanças que o país reclama; a fim de reforçar essa imagem, ele cultiva os esportes, a paixão pelas máquinas e pela velocidade. Imitando o exemplo de arrogância, seus partidários percorrem o país durante a campanha que antecedeu a posse realizando comícios barulhentos e enfrentamentos de rua com adversários, geralmente socialistas e comunistas. Sua posse ocorre em meio a um clima de desordem financeira e descrédito da instituição parlamentar. No conjunto de suas primeiras medidas ele atinge bancos e empresários, a quem ataca como causadores dos males que afligem a população. Ao discursar perante a Câmara dos Deputados, recém-empossado, ele se jacta que poderia ter fechado as portas do Parlamento com pregos, mas não o fizera. Logo pediria poderes especiais para governar que lhe seriam concedidos por uma Câmara amedrontada. Fernando Collor de Mello? Não: Benito Mussolini, o dirigente fascista que por força da pressão popular se impôs ao rei Vittorio Emanuele 3° como primeiro-ministro da Itália em 1922, fez-se ditador, fraudou as eleições de 1924, apoiou o general Franco na Guerra Civil Espanhola (1936-39), invadiu a Abissínia (hoje Etiópia) em 1935, a Albânia em 1939 e no ano seguinte perfilou seu país ao lado da aventura megalomaníaca de Adolf Hitler, que levaria à derrocada de ambos. Durante o período em que governou, Mussolini controlou de fato, a inflação. "Vencer ou vencer" não era o seu lema, mas algo próximo disso. Mussolini tinha por hábito encerrar seus discursos em praça pública com o refrão "Vincere!" (Vencer!). Estimulada pela gesticulação frenética e pela intensidade emocional de suas perorações, a massa respondia em coro: "Vinceremo!" (Venceremos!). Não havia como discordar. Reivindicar liberdade e respeito à Constituição era apegar-se a velharias inúteis, discordar do governo era trair o sonho de restauração da grandeza da pátria, ter posições de esquerda era entregá-la à baderna e em seguida ao domínio estrangeiro da União Soviética. Por um deslocamento semântico, a idéia de fascismo ficou associada, na América Latina da época atual, ao estereótipo de generais carrancudos atrás de óculos escuros, governando contra os interesses da massa popular e frequentemente de quase toda a sociedade, associados apenas a um punhado de banqueiros, tudo sob a suposta orquestração do Pentágono e das multinacionais. Além de falso, esse estereótipo tem pouco a ver com o fascismo original. O fascismo era essencialmente um movimento popular. Formou-se em meio às multidões que vagavam sem esperança nem ocupação definida pelas ruas das grandes cidades. Recrutou suas legiões entre desempregados, ex-combatentes, trabalhadores sem qualificação técnica, ressentidos de todo tipo, antes de empolgar pequenos proprietários, funcionários de classe média e finalmente até a alta burguesia, preocupada com a iminência de um governo de esquerda e que identificou no fascismo um mal menor. Manteve-se fiel ao seu nascedouro, lado a lado com o movimento sindical, até nos símbolos: a camisa negra, característica dos seguidores de Mussolini, foi adotada porque essa era a cor dos militantes anarco-sindicalistas. Renan Calheiros, Zélia Cardoso de Mello, Antonio Kandir, João Santana etc. estariam, nesse aspecto, inovando tão pouco quanto seu chefe, porque o modelo original sempre foi recheado de trânsfugas da esquerda. Eram intelectuais socialistas que o sentimento de fracasso ou uma impaciência excessiva compeliu a aderirem às fanfarras triunfantes e que desde então passaram a votar um ódio feroz contra tudo o que parecesse intelectual ou soasse "progressista". O próprio Josef Goebbels vislumbrava em Hitler o messias capaz de implantar o verdadeiro socialismo na Alemanha; Mussolini, cuja profissão oficialmente era a de jornalista, foi redator-chefe do jornal socialista "Avanti!" até ser expulso por advogar a guerra depois de 1914. Mussolini virou objeto de piada, dentro e fora da Itália. Seu histrionismo marcial, seus modos enfurecidos e patéticos, as derrotas militares que acumulou, a circunstância de que os mesmos recursos que nas mãos dos nazistas produziam terror nas suas se desfaziam em franca palhaçada -tudo isso o tornou personagem de uma galeria folclórica e escatológica do humor italiano. Mas não era assim no início. O talento oratório de Mussolini, sua aptidão para o que hoje chamaríamos de marketing político, o vigor que imprimiu à sua pregação nacionalista suscitaram uma admiração efêmera, mas generalizada, até no exterior. Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico, chegou a declarar que não hesitaria em vestir a camisa negra, se fosse italiano. Não era, felizmente para ele. A Itália foi lançada a uma experiência temerária que custou o esmagamento da sua cultura milenar e a ascensão de um estilo de vida baseado na vulgaridade, na intimidação, no medo e nas delações anônimas. O preço maior foi pago não em liras, mas em vidas. É verdade que nenhuma experiência histórica se desperdiça e o país ressurgiu da catástrofe fascista para se transformar hoje numa das democracias mais estáveis e ricas do mundo. Historiadores discutem o sentido mais profundo do fascismo e há até uma corrente controvertida que o situa como interregno necessário, como condição, no que diz respeito ao fundo e não à forma, virtualmente indispensável para a organização da democracia capitalista moderna na Alemanha e na Itália. Esses dirigentes messiânicos e auto-suficientes, dos quais Mussolini é um dos paradigmas neste século, são justamente os joguetes mais cegos da história, que os utiliza e depois descarta implacavelmente. Como a pessoa que vê as horas em seu relógio, ao mesmo tempo ouve as badaladas na igreja próxima e daí conclui que foi o seu ponteiro que acionou os sinos, eles imaginam comandar os acontecimentos quando são na verdade comandados; vêem a superfície rumorosa da política, onde imperam a ferro e fogo, mas não alcançam a profundidade subterrânea, as relações microscópicas onde milhões de pessoas constróem, sem saber e sem ter tampouco a pretensão de sabê-lo, o destino da sociedade -e de seus pequenos mussolinis. Leia mais: |
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