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Carlos Heitor Cony
cony@uol.com.br
  18 de abril
  O homem e a roda
 
"Guerra e Paz", de Tolstói, é um dos grandes livros da humanidade. Grande em todos os sentidos: na expressão artística e no volume em si. Em situações de emergência, serve para escorar uma cama, uma cadeira. Pergunta: é possível alguém ler o maior romance da literatura russa na telinha de um micro ou de um notebook? Um problema pessoal, evidentemente. Há gosto para tudo.
No que me toca, tenho da leitura um prazer específico quando pego um livro tradicional, feito de papel e letras impressas no velho sistema guttemberguiano. Aprecio a capa, o cheiro, até mesmo o peso do volume. Posso ler o livro em diversos lugares, na posição que escolher. Se um trecho me impressiona, se uma frase merece ser destacada, tenho o recurso da anotação.
Uma de minhas maiores emoções é quando releio um livro cuja primeira leitura foi feita há muitos anos e encontro uma observação antiga. Procuro imaginar o que senti, o que me levou a anotar aquele trecho ou aquela frase. Seguramente, este é o caminho mais curto e direto para compor minha autobiografia espiritual - aquela que jamais será escrita.
Bem verdade que a informática dispõe de recursos até maiores para este tipo de observação. Posso destacá-lo em cores, gravá-lo em disquetes, fazer um arquivo especial e detalhado de cada assunto. Mas o computador, ao menos no estágio em que se encontra, é ainda alguma coisa próxima a um eletrodoméstico. Exige uma servidão que nem sempre estou disposto a lhe dar. Tenho de ligá-lo, acessar o que me interessa, ficar sentado diante dele, forçar a coluna já bombardeada por bicos-de-papagaio que o tempo me trouxe. Enfim: é uma tarefa, um labor, um compromisso.
Apesar disso, acredito que a tecnologia é um processo sem fim e que chegará o dia em que haverá telas de computador tão finas quanto uma folha de papel. Já existem aparelhos de TV que podem ser colocados na parede como se fossem um quadro. E já ouvi dizer que um japonês conseguiu escrever um tratado guerreiro, cuja versão tradicional implicava um livro de 500 páginas, num pequenino grão de arroz.
Quando passei do jornalismo diário para o semanal, numa revista ilustrada, que tinha a foto como elemento principal da informação, ficava decepcionado com a reprodução dos cromos que editava. Recebia das agências internacionais as melhores fotos dos melhores fotógrafos do mundo, projetava-as na minha sala, ficava maravilhado. Quando recebia as provas impressas, fatalmente ligava para a gráfica reclamando do trabalho. Por sinal, era a melhor gráfica da América Latina naquele tempo.
Até que um dia, o responsável pelo setor perdeu a paciência e retrucou: - "Você quer o quê? O cromo no projetor é atravessado por um feixe de luz. Eu não tenho nenhum papel com luz!" Na ocasião, achei que era desculpa de mau pagador. Mas com o tempo fui verificando que o tipo de papel ia melhorando, aceitando melhor o complexo sistema de cor. Não existe ainda um papel com luz, que reproduza o mesmo efeito de um projetor. Mas a humanidade começou sua caminhada sem a roda, sem a bússola, sem a penicilina e sem o computador.
Por tudo isso, se sou pessimista no que diz respeito ao destino final do homem na face da Terra, sou obrigado a ser otimista no varejo. A tecnologia poderá chegar a um estágio impossível de ser imaginado com as nossas atuais limitações. E fico pensando se um dia não poderemos ler "Guerra e Paz" em versão eletrônica, num aparelhinho do tamanho de uma agenda, em forma de páginas que desdobraremos como um livro.
Não será para os meus dias. E, honestamente, não tenho pressa em aproveitar tamanha conquista tecnológica. Fico bem com os livros. Eles têm um cheiro especial, e quando acabam de ser lidos adquirem não apenas o meu cheiro, mas o meu gosto e o meu gesto.



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