NOSSOS
COLUNISTAS

Amir Labaki
André Singer
Carlos Heitor Cony
Carlos Sarli
Cida Santos
Clóvis Rossi
Eduardo Ohata
Eleonora de Lucena
Elvira Lobato
Gilberto Dimenstein
Gustavo Ioschpe
Helio Schwartsman
José Henrique Mariante
Josias de Souza
Kennedy Alencar
Lúcio Ribeiro
Luiz Caversan
Magaly Prado
Marcelo Coelho
Marcelo Leite
Marcia Fukelmann
Marcio Aith
Melchiades Filho
Nelson de Sá
Régis Andaku
Rodrigo Bueno
Vaguinaldo Marinheiro

Carlos Heitor Cony
cony@uol.com.br
  20 de abril
  Companheiro de viagem
   
   
RIO DE JANEIRO - Sentou-se à minha frente, no ônibus que nos conduziria ao avião da Ponte Aérea. Tinha seus 50 anos. Levava uma sacola. O que me impressionou foi o bolso de sua camisa. O paletó aberto deixava ver tudo o que ali havia.
Umas cinco ou seis canetas de diferentes feitios e cores. "Para que tantas canetas diferenciadas?" foi o que pensei. Mas além das canetas, tinha no mesmo bolso uns cinco caderninhos de agenda, suficientemente manuseados. Que endereços e telefones o obrigavam a trazer colados ao coração tantos caderninhos?
E havia mais. Um envelope comprido, que parecia um aviso bancário ou coisa equivalente. E, naturalmente, o cartão de embarque do vôo das 17h02m.
O bolso estava estufado, estufadíssimo. Mesmo se quisesse, ele não poderia fechar o paletó. Olhava-o, fascinado, tentando imaginar quem seria aquele companheiro de viagem, o que fazia, o que já fizera pela vida afora.
Olhei seu rosto. Era indecifrável, e estava cansado de um dia difícil. Usara aquelas canetas todas? Consultara aquelas agendas? Quando chegasse em casa, o que faria com elas? Deixaria os filhos mexer naquilo tudo?
De repente, tive uma idéia sinistra: se o avião caisse e aquelas canetas e agendas se misturassem com o meu esqueleto espatifado? Quem sairia ganhando perdendo ou ganhando?
Acho que sairia perdendo. Em primeiro lugar, pelo esqueleto espatifado. Em segundo, porque os peritos ficariam confusos diante dos meus ossos, de cambulhada com tantas canetas e cadernos. Talvez até dificultassem a identificação dos meus restos e eu assumiria a identidade daquele homem.
Bem, torci para que o avião não caísse. Pensei que esqueceria o companheiro de viagem. Vejo que não. Ontem, abri o jornal e vi a foto dele. Chamava-se Amaro. Era pracista de uma indústria de azulejos. Foi morto pela amante, que se chama Rosária.


Leia colunas anteriores
18/4/2000 - O homem e a roda


| Subir |

Biografia
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A - Todos os direitos reservados.