Procedimentos estéticos não resolvem o desejo de ser amado, diz psicanalista

Insatisfação com aparência na adolescência é comum, mas é preciso pensar bem antes de fazer cirurgias definitivas

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São Paulo

Um nariz que na adolescência parece grande demais pode, na vida adulta, virar uma das partes favoritas do corpo, aquela que traz uma "personalidade marcante". Agora imagine se, antes de ter a chance desse "upgrade", o nariz for modificado em uma cirurgia plástica, ou depois da tal operação ele até ficar bonito, mas com um jeito nada a ver com aquele rosto?

Personare- Espelho e autoconfiança
Às vezes, uma característica que antes incomodava pode se transformar em algo marcante e legal no próprio corpo quando se chega à vida adulta - Elisa Photography/Unsplash

O arrependimento é um dos riscos de quem decide alterar uma característica física quando ainda é adolescente —há casos em que os médicos abrem uma exceção nas regras da idade mínima. Quem chama atenção para isso é a psicanalista Ivy Semiguem Freitas de Souza de Carvalho, doutora em psicologia clínica pela USP (Universidade de São Paulo) e membra do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic).

"Os procedimentos estéticos por si só não darão conta de responder enigmas mais profundos como o desejo de ser amado, desejado, reconhecido como alguém de valor pelas pessoas ao redor", afirma. Leia abaixo a entrevista da psicanalista ao Folhateen.

É normal a gente não gostar de alguma coisa do nosso corpo na adolescência?

Sim, é comum que surjam inseguranças e insatisfações. Um dos maiores desafios da adolescência é justamente fazer luto daquele corpo que fica para trás, o corpo da criança, que já não "veste" mais. Surge o momento de elaboração de um corpo de adulto, que ainda não se sabe ao certo para onde vai e o que se tornará.

Além disso, a transformação do corpo coloca o jovem diante da tarefa de explorar sua posição no que diz respeito à sexualidade e ao gênero. Surgem questões como "Qual é a minha identificação? Que experiências vou vivenciar, será que serei capaz de beijar, de ter relações sexuais?".

Entendemos que é um processo artesanal, muito singular, na medida em que a construção da própria autoimagem varia muito de pessoa para pessoa.

Como saber se esse não gostar vai passar em algum momento ou se ele vai durar para sempre?

Não dá para saber de antemão se aquilo de que não se gosta no corpo vai passar em algum momento, pois o "não gostar de uma parte do corpo" dependerá de um longo processo de elaboração interna.

Aliás, devido à sua condição viva e mutável, podemos afirmar que o corpo é um processo contínuo, sempre inacabado. Se por um lado isso pode parecer angustiante, também é desse constante movimento que advém a possibilidade de retraduzir alguma parte de que antes a gente não gostava. Por exemplo, jovens que não gostavam de um determinado traço facial no início da adolescência, mas à medida que crescem, percebem que aquela parte do corpo confere a eles um aspecto único, atribuindo uma personalidade mais marcante.

Como saber que chegou a hora certa para fazer uma cirurgia que vai mudar o corpo de maneira definitiva?

Esta é uma pergunta difícil de responder. Por não seguirem uma fórmula universal, as transformações "psicocorporais" não podem ser convertidas em um tutorial de regras claras.

Embora não seja possível determinar a hora exata de se fazer uma transformação como essa, é interessante observar o quanto a escolha de modificar o corpo por meio de uma cirurgia foi conquistada a partir de um processo de reflexão e autoconhecimento. Pode acontecer de buscar a cirurgia para tamponar uma questão maior e depois incorrer no risco de se frustrar, na medida em que os procedimentos estéticos por si só não darão conta de responder enigmas mais profundos como o desejo de ser amado, desejado, reconhecido como alguém de valor pelas pessoas ao redor.

Os adolescentes transgênero têm que esperar ficarem mais velhos para fazer cirurgias, como por exemplo as cirurgias que envolvem retirar os seios ou colocar próteses. O que você acha dessa exigência de esperar?

Esta espera não se trata apenas da passagem de um tempo cronológico, mas está relacionada ao quanto cada um consegue lidar com o corpo que tem do jeito que ele é. A resposta emocional diante desta espera pode variar significativamente, assumindo sentidos particulares para cada pessoa.

Para aqueles adolescentes trans que desejam essa mudança, esta espera pode, sim, ser mais delicada. Isso porque além daquelas questões que o jovem que faz essa escolha naturalmente já tem que enfrentar, ele, ela ou ile/elu tem que lidar também com uma outra questão de ordem social muito espinhosa, o fato de que essa espera não é igual para todo mundo.

Pode existir uma expectativa dos pais de que isso, em algum momento, passe e seja apenas uma fase. Tem também o saber médico que compartilha dessa ideia de que é preciso esperar um tempo para verificar se essa escolha deste jovem vai de fato se consolidar, mas que, muitas vezes, é um saber que não escapa de uma visão com certos ideais normatizantes binários.

E, neste entremeio, existe a forma como isso chega para o sujeito em questão. Muitas vezes, como uma mensagem de desqualificação sobre o saber sobre si. Convenhamos que esta mensagem reiterada de desqualificação não acontece sem ter consequências.

Como lidar com a ansiedade durante a espera?

A ansiedade da espera não se reduz simplesmente à mera cronologia, mas remete a tudo que está associado a esse período. É um estado que leva a pessoa a revisitar e lidar com seus enigmas internos.

Claro que estar diante de uma longa espera para uma cirurgia pode aumentar a ansiedade. Tomar consciência de que este estado de suspensão nos coloca nessa posição de falta de controle já nos convoca, em certa medida, a começar a lidar com essa sensação de impotência. O impacto disso pode ser muito diferente para cada um a depender do contexto em que ele está.

Aqui, não há receita pronta, cada pessoa recorre aos recursos que tem: alguns buscam subterfúgios na religião, outros em medicamentos, outros em análise ou terapia. Independentemente disso, não há dúvida de que essa espera pode se tornar muito menos sofrida na medida em que a pessoa consegue falar e pensar a respeito do que estas mudanças representam para ela. Estar só, sem cuidado e escuta, é realmente a situação mais desafiadora.

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