Jovens fazem shifting para fugir da realidade e visitar universos da cultura pop

Escapar para outras realidades tem virado parte do cotidiano de alguns adolescentes

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São Paulo

Você já ouviu falar em shifting? Se andou circulando pelas redes sociais nos últimos tempos, é bem possível que já tenha topado com vídeos em que jovens contam como conseguiram se transportar para dentro do universo de "Harry Potter" ou mesmo para um passado remoto. Alguns fazem disso uma prática diária.

A onda vem da expressão em inglês "reality shifting", ou mudança de realidade. O objetivo é transcender a mente para um cenário paralelo, que pode ser o de filmes, livros ou séries famosos. Os praticantes creem que é possível elevar o subconsciente até um plano diferente e nele viver experiências tão reais quanto as que vivemos.

A imagem é uma ilustração colorida de uma pessoa com cabelo laranja e uma capa azul, segurando um bastão. A pessoa está em pé sobre uma figura amarela com uma expressão sorridente. O fundo é composto por formas abstratas e nuvens brancas
Ilustração de William Mur para matéria sobre Shifting, nova tendência entre os adolescentes. Prática, que através de uma espécie de meditação, pretende transcender e se transportar para outra realidade - William Mur/Folhapress

Em um dos vídeos virais sobre esse assunto no TikTok, que soma 11 milhões de visualizações, uma garota neozelandesa aparece chorando por ter finalmente alcançado esse estágio. "Eu consegui", diz ela na postagem, que conta com inúmeros comentários positivos e inspirados.

No Brasil, vídeos dos chamados shiftokers também passam do milhão de views e movimentam usuários que se inspiram neles e pedem dicas.

A comunidade de adeptos é numerosa, ativa e se espalha por diversas redes sociais, incluindo o Facebook e o X. Esses adolescentes e jovens adultos, que parecem formar a maioria do público produtor e consumidor desse conteúdo, compartilham dicas, relatos, frustrações e fazem amizade com outras pessoas que têm esse mesmo hobby.

Entre quem pratica o shifting existe algo chamado DR, de "desired reality" —ou realidade desejada em português—, que é qualquer lugar imaginável e para onde eles almejam ir. Um dos destinos mais populares entre os shifters é Hogwarts, a escola de bruxaria de Harry Potter, mas também pode ser algo verossímil como uma versão melhorada da nossa "current reality" (CR), isto é, a realidade atual.

Outro termo comum nessa cultura é S/O, sigla para "significant other", algo como um parceiro romântico. E apesar de não ser necessário ter um na DR, é muito comum que ele exista e que boa parte do enredo desse mundo se desenvolva a partir de relação com esse par, que pode ser um personagem de filme, série, anime ou game.

O ator Tom Felton como Draco Malfoy em 'Harry Potter e o Enigma do Príncipe'
Draco Malfoy, do universo de Harry Potter, é um dos "S/Os" mais populares entre os shifters - Divulgação

O psicólogo brasileiro Ramiro Figueiredo Catelan, que fez seu pós-doutorado na UFRJ, é um dos autores de um dos raros artigos científicos sobre o tema. Ele explica que, apesar de os shifters relatarem terem sentido uma experiência transcendental, não existe comprovação de sua eficácia. Ou pelo menos, não por enquanto.

"O que acontece é uma indução a partir de uma sugestão hipnótica, uma experiência similar a um sonho lúcido, em que a pessoa consegue ter uma experiência muito vívida", diz. Os praticantes dizem que o processo para se chegar à DR é parecido com uma espécie de meditação voltada a acessar e desbloquear a parte da mente que realizará essa viagem. Geralmente, esse processo não é imediato e é necessário usar algumas táticas para auxiliá-lo, por exemplo, fazendo uma contagem de um a cem e, entre cada número, fazer uma afirmação como "eu consigo ir para o mundo de Harry Potter".

Além disso, escrever um roteiro detalhando o que se espera dessa outra realidade, o que deveria acontecer, além da sua relação com as outras pessoas, habilidades, aspectos físicos e mentais são fatores que em tese ajudaram a alcançar a DR. Para criar os tais "scripts" existem até apps que auxiliam na tarefa.

Ao longo desse processo, alguns usuários relatam ter sentido aquilo que chamam de sintomas -formigamentos pelo corpo, espasmos, calor, calafrios, batimentos acelerados, sensação de flutuação e até mesmo ver números repetidos fora da prática do shifting.

Essa cultura, que tem muito a ver com as comunidades da internet, pode ter surgido da combinação de diferentes crenças e da popularização dos chamados subliminais (áudios com afirmações e mensagens subliminares misturados a música).

Há quem tome emprestadas teorias da física quântica e dos multiversos para explicá-la e até quem invoque um documento disponível no site da CIA, a agência de inteligência americana, chamado ""Analysis and Assessment of Gateway Process" para explicar o fenômeno. Outros adeptos acreditam que o shifting sempre existiu e que é praticado há milênios em diversas culturas indígenas como uma viagem xamânica.

Para Catelan, autor da pesquisa científica, ainda não houve interesse de outros pesquisadores em estudar mais a fundo o tema. O psicólogo também destaca a dificuldade de realizar pesquisas empírica, pois é um processo longo e exige autorização dos pais para a participação. "Às vezes o adolescente não vai querer falar para o pai que está fazendo essa prática", afirma.

O shifting é muitas vezes visto negativamente entre os jovens que não praticam ou entre adultos. Afirmam que a prática não é saudável, que os relatos são mentirosos e que os shifters são esquisitos.

O psicólogo não indica a prática entre quem seja portador de algum problema de saúde mental, já que, muitas vezes, ela pode gerar frustração entre quem não tiver sentido que conseguiu executá-la. "As pessoas podem acabar entrando em um estado de sofrimento e piorando o seu quadro de saúde mental.", afirma.

Embora ele destaque que praticar shifting não seja em si algo negativo, é preciso ter em mente que é necessário estabelecer limites para que ele não afete outros aspectos da vida, como a socialização, estudos e lazer. Isto é, que ele faça parte, mas que não seja a rotina.

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