'O Pequeno Príncipe' faz 80 anos e dribla fama de 'piegas' com lição sobre valor da vida e das relações humanas

Obra de Antoine de Saint-Exupéry é comentada por autores infantis e tradutora no Brasil, que fala da relação com o tema da morte

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Aquarela de Antoine de Saint-Exupéry para o livro 'O Pequeno Príncipe' Divulgação

São Paulo

O livro "O Pequeno Príncipe" extrapolou a literatura já há muito tempo, e foi viver também em outros lugares —posts nas redes sociais, tatuagens, conselhos religiosos e discursos de miss em concursos de beleza são apenas alguns dos usos que as pessoas já fizeram das palavras escritas por seu autor, o francês Antoine de Saint-Exupéry, exatos 80 anos atrás.

Talvez seja essa vida, digamos, eclética que o principezinho levou fora das livrarias que o tenha levado a ganhar adjetivos nada gentis ao longo do tempo, como "cafona" (que não é sofisticado) e "piegas" (que é excessivamente sentimental).

O Pequeno Príncipe, protagonista da história que completa 80 anos em 2023 - Divulgação

A tradutora da edição brasileira do livro pela Companhia das Letrinhas, Mônica Cristina Corrêa, acha esse julgamento injusto. "O 'Pequeno Príncipe' não pode ser entendido fora do contexto. Ele foi escrito durante um conflito mundial por um autor que morreu na guerra, e nunca deixou de participar dela", ensina Mônica, que estuda a obra de Saint-Exupéry.

Para ela, como viveu e serviu à força aérea de seu país durante a Segunda Guerra Mundial, na década de 1940, o escritor entendeu que precisava de algum modo tratar em seus escritos do que Mônica chama de "realidades incontornáveis".

"Ele precisava falar de toda a dilaceração que as pessoas estavam passando. Ele inclusive dedica o livro ao amigo que estava passando fome e frio, um judeu que estava sendo perseguido, e traz para a história a solidão da época. O Pequeno Príncipe é muito sozinho e está procurando amigos."

Na história, o principezinho vai contornando todas as dificuldades para conseguir um amigo —no caso, a raposa, que é quem o ensina sobre o que realmente vale a pena na vida. "Os baobás, por exemplo, que têm o poder de esmagar um planeta inteiro no livro, são uma metáfora do nazismo, que ia para cima dos países varrendo tudo", comenta.

"Não faz sentido olhar para tudo isso e achar piegas. Vejo como má vontade das pessoas. Isso tudo fora a decisão que ele toma no final, com o destino ousado que dá para o protagonista", provoca Mônica, que não vai dar spoiler para quem não leu o livro, mas já mostra que as coisas não saem às mil maravilhas no desfecho.

Para quem não conhece a história, aliás, ela mostra as viagens do menino habitante do asteroide B-612 pelo universo. O narrador é um piloto cujo avião sofreu uma pane e caiu no deserto do Saara, onde ele encontra o Pequeno Príncipe, que lhe conta quem é.

Uma curiosidade: Saint-Exupéry se inspirou um um menino que viu no colo dos pais em um trem de pessoas deportadas da França, indo em direção à Polônia. "Ele fica abalado ao ver aquelas pessoas todas indo embora, era uma pré-deportação de judeus. E ele vê um casal com uma criança loirinha como os pequenos príncipes das lendas", explica Mônica.

Por isso, ela acredita que o príncipe do livro tenha uma idade similar à do menino da vida real, algo entre 5 e 7 anos.

Várias falas do Pequeno Príncipe e de outros personagens, como a Rosa, a Raposa e a Serpente, ficaram famosas. "O essencial é invisível aos olhos", "O tempo que você perdeu com sua rosa é que faz sua rosa tão importante", "Se você me cativar, precisaremos um do outro" são alguns exemplos.

E, por trás de toda essa atmosfera, diz Mônica, está uma importante ideia principal: falar sobre a morte. "O livro não começa com um texto, mas com um desenho. E aquele desenho não é florido, é um desenho de uma fera sendo morta, devorada por uma serpente. E a cara dela é de pavor", diz. "Todo o processo do livro segue até quando o Pequeno Príncipe diz que precisa ir embora."

Isso não faz de "O Pequeno Príncipe" um livro trágico. Para Mônica, é uma história com importantes ensinamentos. "Ele nos faz ver que a morte não faz com que a vida seja inútil ou não valha a pena, mas sim que, uma vez que a gente vai morrer, tem que achar um sentido para a vida, um motivo para viver", opina.

"O príncipe consegue ver coisas que os adultos não veem mais, pois estão contaminados por coisas que não fazem sentido. Para o autor, só há um luxo verdadeiro, as relações humanas. Se você for importante para alguém, você também vai criar sentido para essa pessoa. Como você se veste, onde você mora, quanto você ganha são coisas que não deveriam ter a menor importância."


Conheça alguns personagens do livro

O aviador É o narrador do livro. Seu avião sofreu uma pane no deserto do Saara e, lá, ele conhece o príncipe.
A serpente Fala ao príncipe sobre a solidão e a morte, e oferece a ele a chance de "voltar à origem"
A rosa Habitante do asteroide do príncipe e cuidada por ele, é a flor quem mostra "a falta de raízes dos homens", sua vulnerabilidade e falta de apego.
A raposa É quem se torna a melhor amiga do protagonista e ensina a ele o que realmente tem valor na vida.

Escritores falam da sua relação com o livro

Mirna Pinsky

Curioso voltar ao livro agora. Eu o li nos anos 1980 quando começava a escrever para crianças. Então vamos lá. Relendo agora o livro, no meu entender para as crianças de 1943 quando "O Pequeno Príncipe" foi dado à luz, ele certamente foi revolucionário. E, portanto, conquistou espaço entre os adultos. Para crianças dos anos 1980, quando o li pela primeira vez, me pareceu demasiadamente carregado de mensagens. Ainda que poéticas, eram metafísicas demais para mentes infantis. Mas como quem escolhe e compra os livros são os adultos, penso que seja a razão principal de ter chegado aos 80 anos vivinho da silva.

Tenho dúvida se o mistério da origem, história e destino do príncipe consiga prender o leitor de 8 a 10 anos, a ponto de levá-lo a absorver e se encantar com as inúmeras mensagens.

Mas entendo perfeitamente que o livro tenha deslumbrado gerações de misses Brasil, como ficou conhecido por aqui.

Daniel Kondo

Li "O Pequeno Príncipe" em três momentos: criança, adolescente e adulto.

Gosto porque não nos deixa esquecer que o sonho e a fantasia são essenciais à vida, tanto quanto o ar e a água. Que o coração pode ter olhos, que os carneirinhos podem viver em caixas e que sempre teremos uma rosa esperando por nós em algum lugar do universo.

A raposa é meu personagem favorito, porque fala com o principezinho sobre a importância de cultivar as relações de afeto e de amizade, e que isso nos ajuda a não nos sentirmos sós no mundo, e de sobreviver nessa imensa travessia que é a vida.

Os vínculos de afeto e carinho, que muitas vezes não damos importância, porque sempre estamos ocupados fazendo coisas, na verdade são a base da nossa vida emocional mais plena e mais feliz. "Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante", diz a raposa. Fica a lição: empenhar-se nas relações que são importantes para a gente.

Ilustração de Daniel Kondo em homenagem ao aniversário de 'O Pequeno Príncipe' - Daniel Kondo

Essa frase sempre me marcou muito: "As pessoas são solitárias porque constroem muros em vez de pontes". É uma lição muito importante (infelizmente) sempre esquecida. Quando nos isolamos em nosso mundo, ou em grupos que não toleram o que é diferente, acabamos por constatar a importância de uma formação que nos ensine a tolerância, a amizade, e a empatia.

Essas são as "pontes" que nos levam ao outro e que nos permitem uma vida melhor na família, na escola e no planeta. O principezinho tinha um planeta e uma rosa. E nós, como estamos cuidando do nosso planetinha (interno e externo)?

Rosana Rios

Ganhei "O Pequeno Príncipe" quando tinha 10 anos, em 1966. Tenho ainda o mesmo exemplar, que reli várias vezes no decorrer das décadas (agora tenho 67). Eu era doida por livros mas tinha poucos, e cada vez que recebia um, era um tesouro!

Meu personagem mais querido era, claro, o narrador —o aviador, um cara que desenhava carneiros dentro de caixas e elefantes dentro de jiboias. E que, além de tudo, não discutia se um garoto aparecia de repente no meio do nada pedindo-lhe para desenhar um carneiro...

Hoje, claro que reconheço as metáforas e símbolos que o autor utilizou. E, depois de tantos anos trabalhando com livros para crianças e lendo tudo que me aparece pela frente, sei que há obras bem mais cheias de significado e encantamento, que compro para meus netos...

Mas, ao reler Saint Exupéry, uma coisa estranha acontece: não leio com os olhos e o entendimento de hoje, ainda leio com os da Rosana de 10 anos de idade. E acho estranho como um livro pode ser uma máquina do tempo (sim, ainda adoro ficção científica) e me levar ao passado.

Peguei agora meu velho exemplar de 1966 e vi que, na época, marquei trechos a lápis —não me lembrava disso! Eis o que parece ter sido o meu preferido: "As pessoas grandes adoram os números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não perguntam nunca: 'Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que prefere? Será que ele coleciona borboletas?' Mas perguntam 'Qual é a sua idade? Quantos irmãos tem ele? Quanto pesa? Quanto ganha seu pai?' Somente então é que elas julgam conhecê-lo".

Verdade verdadeiríssima, não?

Meu neto de 11 anos está, no momento, lendo esse livro por indicação do colégio. Diz ele que está gostando, e espero que termine logo a leitura para conversarmos mais sobre a história.

Vi amigos criticarem a obra como bobinha demais —mas penso que, se lembramos que foi escrita há 80 anos, era bastante rica e inovadora. As "pessoas grandes" de hoje em dia continuam adorando os números e ignorando metáforas! Talvez seja por isso que, aos 10 anos, ele me encantou tanto.

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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