Jornalista conta história de ascensão e queda da Rede Manchete; leia trecho de livro
O jornalista e escritor Arnaldo Bloch é um dos convidados da 7ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acontece de 1º a 5 de julho. Na quinta-feira (2), ele divide a mesa "Verdades Inventadas" com os escritores Sérgio Rodrigues e Tatiana Salem Levy, às 15h. O sobrenome conhecido, principalmente nos meios de comunicação, alude à Rede Manchete, antigo conglomerado de mídia que pertencia à sua família antes de falir.
Fotomontagem Folha Online |
A linguagem ácida e irônica é uma das características de Bloch |
Arnaldo Bloch descreve a história da ascensão e derrocada do império no livro "Os Irmãos Karamabloch: Ascensão e Queda de Um Império Familiar" (Companhia das Letras, 2008).
Neto de Arnaldo Bloch, o autor abre a "caixa-preta" da família com humor, sensibilidade e boa dose de auto-ironia, expondo vícios, destemperos, fraquezas e brigas dos irmãos Adolfo, Arnaldo e Boris Bloch.
Paralelamente à tragédia familiar, o livro oferece uma fascinante visão dos bastidores da imprensa e, também, da relação muitas vezes doentia com os profissionais das empresas do grupo.
Leia trecho do livro "Os Irmãos Karamabloch: Ascensão e Queda de Um Império Familiar" e saiba mais sobre o início e a queda da Rede Manchete.
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No comando do carro-chefe, Manchete --cuja redação ocupava metade do oitavo andar do prédio-sede na Glória--, operava o gaúcho Justino Martins, que Adolpho só tratava pelo codinome Índio. Cunhado de Erico Verissimo, complicara-se ao escrever, para a editora Globo de Porto Alegre, um artigo contra o fascismo integralista no governo Vargas. Fora convidado a se retirar do Rio Grande e passou uns anos em Paris, onde ficou íntimo de Jean Genet, ganhou fama no circuito festivo e militou como grand réporter no escritório de Manchete. Com tantas referências, recebeu visita de Adolpho em seu apartamento na rue Laos, na capital francesa, e foi convidado para dirigir a revista, da qual seria o comandante mais longevo.
A redação de Justino (na medida em que algo podia ser de alguém nos corredores do Russel) ficava colada à presidência da empresa, separada da alta administração apenas por uma divisória de vidro transparente, expondo tudo que se passava e se dizia: cada telefonema, cada crise, cada esporro, cada régua quebrada e catapultada ao teto. E também a alegria: quando Adolpho estava feliz tudo se enchia de luz, de gargalhadas, de grandes apostas e idéias. Quando trovoava, o breu se abatia sobre todos. Quando chorava, e a cabeça caía sobre a mesa, as mãos estendidas, eram poucos os que não se compadeciam de sua angústia - que podia ser calculada, de velho malandro, ou agonia mesmo, dor profunda, a "fome ancestral" que Nelson Rodrigues identificara no homem das estepes. "Do que é que eu preciso? Um pedaço de queijo minas?", indagava a funcionários que vinham pedir aumentos ou a banqueiros quando o fardo parecia pesado demais e ele se lembrava do prazer que experimentou ao comer um certo sanduíche de mortadela com Guaraná nos tempos magros. "Aquilo foi a maior refeição da minha vida."
O caos que Adolpho carregava em si refletia-se em olhos desconfiados: o direito franzido, o outro alerta, à espreita na cara feia, "mistura de Ziembinsky com Betty Friedan", na descrição de Jô Soares. Qualquer que fosse o humor, a aproximação de Adolpho instalava suspense, como se soasse um rufar implícito de tambores, que Carlos Heitor Cony evocava, com uma onomatopéia e uma pantomima intranscritíveis, avisando que "o Adolpho vem aí".
Era Adolpho, e mais ninguém, que fazia de Manchete uma família. Não era só a parentada, nem só os mais próximos. Eram todos. Todos os que - funcionários, agregados, amigos, inimigos - pegavam-lhe o jeitão. E também os que, mesmo queixosos do salário, achavam que a vista dos janelões do Russel, a convivência com a nata do jornalismo e a chance de ver Adolpho passar toda hora (com todos os riscos envolvidos) somavam ao orçamento uma espécie de salário indireto.
A sala da presidência era aberta a todos, e por ela passavam não só os funcionários, mas banqueiros, cobradores, publicitários, deputados, presidentes, pedintes e, na maioria das vezes, modelos de nu artístico. Umas eram recebidas como embaixatrizes. Outras, expulsas pessoalmente por Adolpho, arrastadas ao elevador de um modo muito próprio: com a mão enganchada no braço, cutucava a coxa da escorraçada com a ponta do joelho para acelerar o passo.
Aprendera esses modos sabe-se lá onde, parecia coisa de cafetão ou de leão-de-chácara. Mas distribuía as joelhadas democraticamente, não só às vedetes, mas a clientes ou visitantes oficialmente ilustres. Numa fase extremamente anticomunista, quando escrevia os mais ferozes artigos contra a troika soviética, aplicou joelhadas num senhor de origem alemã que, pensando agradá-lo, fez a brincadeira errada: "Viu? Vocês, russos, expulsaram os alemães, e deu nisso".
Se qualquer um podia invadir ou espiar a sala de Adolpho, com todo o cuidado, o próprio dava-se o direito de invadir e espiar as salas de todo mundo sem cuidado nenhum. Principalmente a mesa de Justino, onde os cromos fotográficos eram espalhados sobre a luz branca, território livre para o tirano espalhar seus palpites e descontar suas frustrações, chegando a extremos como as famosas dentadas nas superfícies dos slides, gesto fartamente documentado, peça de ouro no arsenal do folclore adolphiano.
Que mal podiam ter feito a película e a moldura de papelão para merecer o castigo?
(...)
Exotismos à parte, Adolpho tinha mesmo olho para fotografia, o que irritava os profissionais mais gabaritados e menos humildes. Em suas memórias extemporâneas gostava de lembrar a discussão com um fotógrafo que voltara da Amazônia com um material julgado por ele sofrível comparado a outros que a revista - que tinha nos temas florestais e indígenas com páginas duplas abertas e sangradas uma de suas linhas mestras editoriais - já publicara. Passou-lhe uma reprimenda: já tinha visto fotos com muito mais qualidade de ângulo e iluminação. Ferido nos brios, o fotorrepórter alfinetou o estoque de máquinas da empresa. "Seu Adolpho, para fazer o que o senhor quer preciso de uma nova Hasselblad, pois a minha câmara está caindo aos pedaços." "Então é essa a questão? Se eu te der uma caneta de ouro nova, você vai ser o Machado de Assis?"
Ter fé em Adolpho era uma questão de sobrevivência ou sabedoria. Concordar podia ser a salvação ou a perda de uma grande oportunidade. Não levá-lo a sério podia ser um acerto ou um equívoco. Para o cartaz de lançamento da revista feminina Ele & Ela queria uma foto da cadela Manchetinha "latindo o logotipo" num balão de gibi. A idéia acabou abandonada por insistência dos publicitários. Mas quem podia garantir que não era de fato melhor que o insosso casal se beijando com ramalhete ao fundo, que prevaleceu? Estaria errado o Adolpho ao vetar uma capa da Revista Geográfica Universal mostrando uma paisagem marítima, sem referência de terra? "Mar aberto é tudo igual, porra. Qual a diferença entre o meio do mar do Caribe e o fundo do Posto 6?"
Equivocava-se Adolpho ao vetar uma estrela de tevê ou uma promessa das passarelas numa capa de Manchete sob a alegação de ser "a maior merda de mulher que já viu na vida?" Que lógica o levava, por exemplo, a alçar ao poder figuras intuitivas, que vinham apontar-lhe suas próprias merdas, como era o caso do Marechal? Auxiliar da família Nelson Rodrigues quando esta desembarcou na empresa, o contínuo Floriano (daí o apelido) caiu nas graças de Adolpho não por obediência ou omissão, mas por ter coragem de espinafrar uma capa cujo título encantara a todos, ao Justino, ao Zévi, ao Jaquito, mas não a ele: "O fenômeno da Miss Brasil negra".
"Seu Adolpho, fenômeno é bicho de três cabeças", mandou o Marechal, sem titubear, e no dia seguinte já era assessor, conselheiro e emissário de informações do populacho ao patronato, e vice-versa. Passou a vestir um terno azul escuro com botões dourados que Adolpho trouxera de uma viagem a Londres, comprado na Marks & Spencer, que ia muito bem com o negro azulado da pele e o bigodinho maroto do Marechal - que, por onde passava, deixava sua saudação, emoldurada pelo sorrisão retangular. "Saúde boa, querido?"
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"Os Irmãos Karamabloch: Ascensão e Queda de Um Império Familiar"
Autor: Arnaldo Bloch
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 344
Quanto: R$ 48,00
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha
Livraria da Folha
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