Nunca se escreveu tanta besteira, diz autor de "Cinefilia"
Antes de decidir levar adiante o projeto de "Cinefilia", o francês Antoine de Baecque, 49 anos, ficou com uma pergunta a martelar na cabeça. É possível tratar com rigor histórico uma paixão?
É que o livro que o historiador veio lançar esta semana no Brasil fala, basicamente, de uma paixão incontrolável e inexplicável: aquela vivida entre um homem e alguns (na verdade, muitos) filmes.
Ex-editor-chefe dos "Cahiers du Cinéma", Baecque debruçou-se, em "Cinefilia", sobre um momento da história em que "o olhar sobre o cinema se fez ávido". Trata-se de um período que começa na Segunda Guerra Mundial e que toma as ruas no Maio de 1968, na França.
Esmiuçando revistas como "L'Écran Français", "Cahiers" e "Positif", e revelando, na intimidade, o olhar de consumidores bulímicos de filmes, como André Bazin (1918-1958), Geroge Sadoul, (1904-1967) e François Truffaut (1932-1984), Baecque conta uma outra história do cinema, aquela escrita pelos textos críticos.
"A cinefilia sempre se construiu como uma espécie de resistência ao mercado. Ela é uma instância de legitimação cultural", diz Baecque, em entrevista à Folha, em São Paulo. "Foi a cinefilia que deu origem à nouvelle vague e transformou Hitchcock e John Ford em autores. O cinema exige que se fale dele."
Mortos os críticos com quem aprendeu a "ver" e democratizado o ato da escrita sobre cinema, hoje espalhado por blogs e sites, Baecque é enfático: jamais se escreveu tanto sobre cinema, e nem tanta bobagem.
"A paixão de se escrever sobre cinema nunca foi tão presente como hoje. Ao mesmo tempo, nunca houve tão pouco espaço nos jornais e revistas. Esses antigos espaços foram substituídos por uma espécie de multiplicação dos pontos de vista e volúpia na internet", observa.
"Mas é preciso ser realista: a maioria das coisas é muito ruim. Nunca se escreveu tanta besteira e coisas sem interesse quanto agora."
Divulgação | ||
O crítico francês Antoine de Baecque |
PIRATARIA É FORMA DE RESISTÊNCIA À CULTURA DOMINANTE
Antoine de Baecque faz paralelo entre o ato e a cinefilia, ambos em busca do raro e inacessível. Em visita a São Paulo, ele diz que Paris continua a ser cidade de cinéfilos, mas que filmes brasileiros não estão no circuito. Leia, a seguir, a continuação da entrevista concedida pelo crítico francês à Folha.
*
Folha - Em "Cinefilia", vemos uma Paris louca por cinema. Paris ainda é uma cidade cinéfila?
Antoine de Baecque - Sim, a cinefilia continua presente. Poderíamos dizer até que há uma espécie de reconquista desse espaço. O leste de Paris é uma região popular que, nos últimos anos, ganhou várias salas de cinema onde se pode ver todo tipo de filme. Sem falar no Quartier Latin. O filme iraniano "Uma Separação", por exemplo, fez um milhão de ingressos. Há um apetite cinematográfico pelo que vem de fora. Mas não é o caso dos filmes brasileiros ainda.
Essas salas de arte não passam filmes brasileiros?
Praticamente não. Há um grande interesse da França pelo que se passa no Brasil, mas ainda não temos bons objetos culturais para amar, vindos do Brasil. Vemos muito mais filmes argentinos, chilenos ou mexicanos.
Essas salas recebem apoio do Estado?
Ah, sim. Bom, a França é sempre a França (risos). Apesar de a política cultural não ser a prioridade do governo Sarkozy, há uma estrutura que se mantém. Neste momento, todas as salas de arte estão fazendo a transição para o digital, e isso só é possível pelo apoio do governo.
No livro, você fala da cinefilia como cultura clandestina, de clã, e um tráfico fetichista de filmes. Nesse sentido, podemos considerar certo tipo de pirataria como desdobramento da cinefilia?
É uma prática cinéfila que se adapta aos tempos modernos. Existe, entre os cinéfilos, um elogio da pirataria. Seria uma nova forma de resistência à cultura dominante, que segue a tradição de ver o filme raro, inacessível.
Nos anos 50, cineastas de Hollywood, como John Ford, Hitchcock e John Huston tiveram a reputação construída pela crítica. Isso ainda ocorre?
Sim, é exatamente a mesmo lógica com o Michael Mann e o Tim Burton. Eu era redator nos "Cahiers" quando vimos que "Batman" [de Burton] era um filme de autor e o colocamos na capa. Muitos cancelaram a assinatura, dizendo que a revista tinha se vendido à indústria.
CINEFILIA
AUTOR: Antoine de Baecque
TRADUÇÃO: André Telles
EDITORA: Cosac Naify
QUANTO: R$ 82 (472 págs.)
LANÇAMENTO: Amanhã, após exibição do curta "Uma História d'Água", às 20h, no Reserva Cultural (av. Paulista, 900, 0/xx/11/3287-3529); na quarta, o autor participa, às 19h, de bate-papo sobre a nouvelle vague na Livraria Cultura do shopping Bourbon (r. Turiassu, 2.100, 0/xx/11/3868-5100)
Divulgação | ||
Godard (à esq.) e Truffaut, expoentes do movimento cinematográfico Nouvelle Vague |
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade